As 42 primeiras páginas do meu livro Ônix


Saudações;

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 Logo abaixo você poderá  escutar o áudio das primeiras 42 páginas do livro Ônix,  da leitura que fiz, ao clicar neste vídeo:

Ou pode ler tais páginas - solicitando o arquivo em PDF pelo e-mail portalwillmor@gmail.com - lendo direto logo abaixo:


William Morais
Apresenta:



    

Ônix


 - Versão estendida -





Revisão:
Sario Ferreira (sarioferreira@gmail.com)
Renata Rodrigues

Capa:
William Morais




Todos os direitos reservados e protegidos pela lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios existentes ou que venham a ser criados no futuro, sem a autorização prévia, por escrito, do autor.





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Contato com o autor: portalwillmor@gmail.com
 



Nota do autor:



Ônix é uma obra oriunda de uma possibilidade. Recorre a um possível futuro. Uma única linha entre infinitas, num mar de universos paralelos.
Tal futuro, em tal universo, no entanto, nasceu a partir desse tempo presente, neste universo.
Cada livro da Saga do Novo Tempo é um relato sobre alguns personagens desse futuro. Cada livro é independente, embora se complementem. Ônix é um deles.
O livro Ônix, entretanto, difere significativamente dos outros, por traçar uma ponte entre esse possível futuro e o nosso tempo e ter a ousadia de atravessá-la.
 A ponte é alta. O livro Ônix é uma vertiginosa e filosófica aventura pirata a se desdobrar na diversão. É um ponto de partida numa jornada atemporal pelo universo do Novo Tempo. Entrelaça o cotidiano com o fantástico na esperança de transformar os dois num só.
 Não é para muitos. É para mim e para quem há de ser...   


                                                                                                      

         
Importante: Esta versão estendida do meu primeiro livro foi concluída em 2016, sete anos após a primeira versão. A demora é justificada pelo fato de eu me dedicar a outras artes, como esculturas e teatros. Também por isso, o lançamento desta versão só aconteceria no primeiro mês de 2018.
            Quem conhece minha história sabe que nos primeiros dias de tal ano, meu mundo desabou numa perda indescritível. Uma provação para a qual eu não estava e nunca estaria preparado. Verdade seja dita, este livro ganhou um novo significado e talvez eu tivesse vontade de atualizá-lo para acentuar cada momento importante além das páginas, embora através delas. Não o farei, porém.   
Este livro é um registro mais puro do amor que encontrei neste mundo, da forma como está escrito. Sem o peso da perda, talvez ele seja uma lembrança constante de um amor que não terá fim e de que a morte é uma separação temporária. 
            Assim sendo, leve em consideração que tudo o que será lido daqui em diante, foi escrito quando eu ainda tinha o amor da minha vida ao meu lado. A minha dedicatória continua a mesma e mesmo sendo uma prece que por algum tempo não poderá ser atendida, continuará sendo meu eterno desejo.




À minha amada;

Que os ventos soprem forte minhas velas em direção a seus braços; para cada novo momento, nos quais, me refaço. Aceito minhas verdades; das mentiras, me desfaço. Seu sorriso me desarma, sua respiração, tão perto, me acalma. Que cada gota caída do céu até hoje represente muitos beijos, com os quais ainda me contemplará. Presentes. Que me contem seus desejos e que eles sejam meu mar...
 




Prelúdio I - Rabiscos numa mesa.

Aquela escolha determinaria meu futuro e tive plena consciência disso. Lembro de ter pensado: “Hoje vou cometer o maior erro da minha vida. E já não era sem tempo.”

Era julho de 2002 do calendário cristão e o tédio me consumia. Estava no escritório de contabilidade no qual trabalhava. Tinha uma sala só minha. Um ano como office-boy e fui promovido para trabalhos internos no setor fiscal. Perdi o hífen. Ganhei um espetacular aumento salarial. Graças a isso, me estabilizei. Podia cuidar da minha família. E minha alma morria em silêncio...
Era o segundo escritório de contabilidade no qual trabalhava. Depois do primeiro, havia prometido nunca mais trabalhar nesse ramo novamente. Quebrei uma promessa para estar ali e logo completariam três anos.
O telefone não tocava havia quase vinte minutos. Isso era uma dádiva. Era fim de expediente. Eu rabiscava a mesa com minha lapiseira. O grafite 0.5 gravava, na superfície lisa, um dragão. Mais um.
Os dragões não eram os únicos desenhos rabiscados por mim, naquela mesa. Havia um peixe. Não um peixe qualquer. Sua cauda era uma mão. Ele era sustentado por uma planta. Não uma planta qualquer. Ela se transformava numa serpente da qual pendia uma maçã em formato de coração.
Um peixe-mão. Uma planta-serpente. Uma maçã-coração. Muitos dragões. Para mim, meus desenhos tinham profundo significado, além de trazer vida para a mesa. Eles não durariam muito, no entanto, como muitos outros antes deles.
Em minha mente, o peixe tinha cor de fogo. Uma puta ousadia, se você pensar bem. Ele, porém, não vivia na água. Uma ousadia ainda maior, se você pensar melhor. E tais ousadias seriam apagadas em breve pela mulher encarregada da limpeza do escritório.   
A faxineira não desistia de apagar meus desenhos, assim como eu não desistia de refazê-los. Nunca discutimos. Para ela, no entanto, o peixe era cinza e não cor de fogo; tenho certeza.
Minha mente estava mergulhada na ideia de um dia ser um artista de verdade e usar minha arte para alcançar quem também está em busca de mais significado para sua vida; ou em busca de brindar a algum já encontrado.
 Existem muitas pessoas enxergando apenas em cinza e parecem ter satisfação em apagar algumas de nossas partes de nós. Partes importantes.
É preciso reforçar, de quando em quando, os traços dos desenhos verdadeiramente relevantes em nossas almas.
 Mirando a imagem na mesa, senti estar tentando falar comigo mesmo. E era algo muito importante.  
Uma janela minimizada, no canto inferior do meu computador começou a piscar. Abandonei a lapiseira. Direcionei a seta, através do mouse, e cliquei sobre a janela. 
– Você tem certeza disso? – A pergunta surgiu na janela expandida, onde uma conversa acontecia. Vinha de um amigo, do outro lado da cidade, certamente preocupado com minha decisão.
– Sinto que devo fazer isso – respondi. Como estava escrevendo um livro sobre um pirata, acrescentei, teclando: – Meu coração é a única bússola que tenho, nesse grande mar da vida. Aprendi a segui-la e só me resta confiar. Com sorte, ela me levará aonde devo ir, para aprender o que devo aprender. Até mesmo se for para aprender a não me arrepender de péssimas escolhas.
– A escolha é sua, meu jovem. Mas, é trocar o certo pelo muito duvidoso. – A frase apareceu abaixo da minha, na tela do computador, em resposta quase imediata. Ele sempre me chamava de jovem, mesmo sendo mais novo, em alguns meses.
– O dinheiro aqui é bem certo, de fato. Paga minhas contas e da minha família, de fato. Isso é bem certo. Tão certo como minha infelicidade – respondi. – Estou trocando a terra firme pelas ondas bravias de um mar desconhecido para mim, bem sei. Mas, ou uso essa bússola; ou desisto dela de vez. E, sejamos sinceros, já tem muita gente sem coração no mundo. Não concorda?
           A resposta foi uma carinha amarela sorrindo, um smile, apenas. Meu amigo devia me achar louco. Me respeitava, no entanto. Sua preocupação era por se importar. Seja como for, ele sabia não poder fazer muito para me fazer mudar de idéia. E não fez.

Falei com o chefe naquele dia. Em consideração ao camarada, porém, concordei em ficar até o fim do ano. Ele precisava de tempo para achar um substituto para mim. O trabalho era horrível, mas o chefe e outros funcionários eram legais. Fiz amigos ali e os visitaria, na medida do possível.
A angústia não desapareceu, porém. Não desapareceria enquanto eu não pudesse me dedicar mais a meu livro.
 Tentava, arduamente, escrever em meus momentos livres. Gastava horas, porém, indo para o escritório. Gastava muitas horas no escritório. Gastava horas para voltar para a casa, graças ao trânsito infernal, similar ao matutino. Sem mencionar o fato de chegar extremamente cansado, física e mentalmente. Quase não havia momentos livres.
Naquele dia, fui deitar angustiado. Sentia como se estivesse negligenciado meu verdadeiro dever. Algo em mim me cobrava aquilo de uma forma absurda e não sabia explicar a razão. Só sabia da necessidade de escrever.  
Mas meu amigo estava certo. Não sabia como seria meu futuro largando uma carreira promissora por um sonho. A escolha foi feita, no entanto.
Imaginei os desafios vindouros. Uma coisa é imaginá-los; outra, bem diferente, é vivenciá-los. E os vivenciaria, tinha certeza.
Com um frio na barriga, demorei a dormir e a me entregar a um sonho. O sonho, porém, não era bem um sonho e nada mais seria como era.




Interlúdio I – Fora do tempo e do espaço

Era tudo cinza ao meu redor. Várias tonalidades oscilantes. Em todas as direções. Chão e céu. Mas havia brilhos aqui e ali. Pareciam relâmpagos. Acima e abaixo. Um zunido estranho me desorientava. Mas havia estrondos, surdos e distantes, aparentemente vindos tanto de baixo como do alto. Pareciam trovões. Sentia vontade de vomitar.
Havia alguém diante de mim. Era um velho. Vestia roupas claras, embora encardidas, rasgadas e esvoaçantes, mesmo não havendo vento ali. O sobretudo parecia ter vida própria. A longa barba era tão clara quanto o cabelo, igualmente longo. O branco mais intenso, porém, cobria completamente os olhos do velho.
Ele me era familiar, de uma forma muito indefinida. O lugar não me era estranho. A sensação me deixou em estado de alerta, um tanto assustado. Não o suficiente para querer fugir dali.
Sempre fui fascinado por sonhos. Sempre tive certo controle e lucidez durante alguns. Já havia estudado projeções astrais, em teoria e prática. Algo ali era diferente, porém, de tudo já vivido por mim, de paranormal.

Depois de algum tempo, me atrevi a perguntar:
– Eu já estive aqui antes, não estive?
– O que é antes? – o velho questionou. Esboçava um sorriso.  – A ordem não importa. Não aqui. Você logo entenderá. É como um quebra-cabeça cósmico.
 A resposta não me satisfez. O velho soube e tentou me ajudar a me situar, perguntando:
– Quais são suas lembranças sobre este lugar?
– Havia um enorme peixe-dourado aqui. Mas não era apenas um peixe – falei. Parecia uma lembrança, mas não chegava a ser. Escapava da minha mente, como se eu perseguisse uma raposa por um labirinto, vendo apenas a sua cauda em cada virada. A raposa, nesse caso, era um peixe-mão e o labirinto era minha mente.
O quase peixe em minha quase lembrança era similar ao desenho feito por mim, em minha mesa no escritório de contabilidade. Na quase lembrança, porém, ele tinha cores vívidas, literalmente. A coisa toda estava viva.
Me esforcei para focar a visão e a lembrança se tornou mais nítida, assim como uma dor aguda em minha cabeça. Suportei a dor e me lembrei de estar olhando para o peixe-mão. Ele tinha quase um metro de altura.
Suas guelras se moviam, abrindo e fechando, como sua enorme boca, em busca desesperada por algo para se manter vivo – falei. – Sua nadadeira estava fincada no espinho da planta-serpente, abaixo dele. Ele se equilibrava ali.
– Você está descrevendo o selo – o velho disse. – Lembra o que aconteceu quando se aproximou dele?
Precisei me esforçar muito para encontrar a resposta.  Era uma lembrança, mas de alguma forma, eu sabia tratar de algo que ainda aconteceria; e a simples consciência disso nublava minha mente. Uma lembrança do futuro? Não fazia sentido.
Ante o novo e doloroso esforço, consegui enxergar como terminou a cena com o peixe-mão; o tal selo.
Relatei ao velho como ele pediu e, quando contei o desfecho, meu coração descompassou. A partir de mim, houve uma ondulação no ar. A onda translúcida pareceu percorrer todo aquele cinza.
– O que foi isso? – perguntei. O coração voltando ao compasso estabilizado.  
– Você se lembrou de ter quebrado o selo e, a partir disso, o mapa foi ajustado – o velho respondeu. – Não importa se ainda vai acontecer. Sua mente acionou o mapa por se lembrar de tê-lo acionado, através do selo. É o suficiente. Já podemos usá-lo. Simples assim.
Me senti mais zonzo ainda. Não tinha nada de simples. Esfreguei as têmporas para aliviar o desconforto. O quebra-cabeça cósmico teria de esperar para fazer sentido.  Me senti irritado e, como não buscava mapa algum, perguntei:
– Que lugar é este?
– Que lugar não é este? Seria a pergunta mais apropriada o velho rebateu. Sua voz era rouca e profunda. – Está fora do espaço. E do tempo, devo acrescentar.
– Você é Deus? – Não pude evitar a pergunta e fiz uma careta, já arrependido de minha ingenuidade, antes mesmo de ver o esboço de um novo sorriso esticar os lábios dele.
– Você sabe quem eu sou ele respondeu. – Só não sabe que sabe. Ainda. Mas, com um tantinho de esforço, vai lembrar.
– Holdur. respondi, sem saber como sabia. Ele sorriu. E continuei: – Mas não é seu real nome. É um apelido, tirado da mitologia nórdica. 
– Qual nome é real? ele provocou, bufando um riso. – Esse me serve. Por ele sou, fui e serei conhecido por muitos; incluindo você.
– De onde lhe conheço? – perguntei, tentando ser mais específico.
– De quando? Seria a pergunta mais apropriada.
­– Isso é um sonho – afirmei, mirando o nada. – Estava acordado há pouco; tenho quase certeza.
– Ou está invertendo as coisas.

O velho pareceu esperar minha compreensão sobre tudo aquilo. Ao entender ser cedo demais para eu entender, Holdur deu alguns passos, aparentemente a esmo. Parou e esticou o braço direito na minha direção; a palma virada para baixo durante um momento.
Ao virar a palma da mão para cima, ergueu o braço e vi uma esfera emergir do chão, feito uma imensa gota de água se formando ao contrário. A esfera respondia aos movimentos do velho e se destacou do todo abaixo de nós.
Holdur moveu os dois braços, fazendo um círculo no ar, enquanto a esfera flutuava ao nosso redor. Ele parou de se mover por um instante. Os braços abertos. A esfera estacionou diante dele, entre nós, na altura de seu peito. 
Fiquei em silêncio. Ele não:
 – Este lugar guarda todos os mapas para todos os tesouros, de todas as almas. E esse será seu ponto de partida nesta caçada.  

Vi, dentro da esfera, uma cópia miniatura de uma parte específica do céu existente abaixo de nós. A pequena parte brilhava dentro da esfera numa sequência exata, em sincronia com a sua versão ampliada, ainda imersa no todo sob nossos pés.
O chão parecia uma fina camada de gelo, embora não frio, a nos separar do céu abaixo. As nuvens, na parte inferior, acendiam e apagavam numa sequência nada aleatória. Prestando bastante atenção, era possível sentir, mais do que ver, as linhas finas nas quais os brilhos aconteciam. Cada linha numa tonalidade de infinitas cores. O cinza não era tão cinza, em verdade. As oscilações frequentes, nas cores do prisma, davam aquela ilusão. As linhas corriam em várias direções e, em alguns locais, as explosões surdas aconteciam.
Aquele lugar era um imenso mapa e tinha realmente reagido à minha lembrança de quebrar o selo vivo.  Fiquei muito assustado e sem saber a razão.
Num sussurro rouco, o velho falou:
– Vou lhe contar uma história. Se prestar atenção, tudo fará sentido. Será tão revelador quanto divertido.
 Holdur não esperou qualquer reação minha e moveu os braços com velocidade e vigor, levando as palmas das mãos em direção à esfera translúcida diante dele.
 O choque gerou uma explosão. Tudo ao redor desapareceu num branco dolorosamente intenso. Não adiantava fechar os olhos. Eu não tinha mais olhos ou forma, aliás. Estava lá, mas não estava. Apenas presenciava.

A voz rouca de Holdur falava direto à minha mente. As palavras eram sobre um homem ajoelhado, prestes a morrer.
 A cada palavra dita pelo velho, um cenário era construído naquele branco intenso da explosão; como tinta viva jogada numa tela etérea tridimensional.
As imagens estavam um pouco borradas, mas era possível ver tochas iluminando o lugar. A inquietação das chamas faziam a sombra do homem no centro da cena dançar na madeira sob seus joelhos. Havia outros ao seu redor, logo percebi.
A voz do velho continuou esparramando sons, também borrados, como as cores fortes das imagens.
Minha mente tentou, em vão, entender como tudo aquilo estava relacionado a mim e o que era tudo aquilo. Só entenderia se prestasse atenção, entendi. Tentei dissolver o medo de me desfazer. Esperei a tal história fazer sentido no final, sem fazer ideia do quanto iria muito além dessa expectativa.
Calei as perguntas de minha mente e os borrões se transformaram num mundo extremamente nítido, em imagens, sensações e sons; como jamais percebidos antes.
Era uma taverna e a voz de Holdur mantinha a cena viva.


Capítulo I – O mestre das apostas

O dia ainda não havia nascido na Taverna do Coelho Caolho, imersa em sombras, silêncio e expectativa. As poucas tochas, ainda acesas, tremeluziam em seus últimos momentos de fogo e iluminavam a face de um homem ajoelhado, tremendo em seus últimos momentos de vida.

Era o primeiro mês do ano 524 do Novo Tempo. Seria o ano 2536 do antigo calendário cristão, se tal calendário não tivesse sido abandonado e esquecido, juntamente com a história passada da humanidade e toda tecnologia moderna. Nessa civilização neomedieval, havia muitas tavernas, frequentadas por muitos piratas. A taverna do Coelho-Caolho, no entanto, merecia atenção especial.
Um homem, amarrado e de joelhos no chão, tinha uma espada encostada em sua garganta. Quem o ameaçava era o velho mestre das apostas, com sérios problemas mentais e linguísticos.
O homem ajoelhado ofegava sob os olhos arregalados do velho. Ao redor dos dois homens no centro, havia alguns bêbados debruçados sobre mesas manchadas de vinho. Havia um taverneiro atrás do balcão. A atendente estava em pé, entre duas mesas, tão inerte quanto a rosa branca, pousada sobre um barril, não muito distante dela.
Como a rosa, ninguém fazia menção de tentar salvar tal homem ameaçado.
A lâmina fria do mestre das apostas ergueu a face do coitado que, de qualquer forma, miraria o alto em busca de um santo qualquer. Num último ato de desespero, o ameaçado rompeu o silêncio com uma prece. Não acreditava em nenhum deus. Naquela situação, no entanto, passaria a acreditar em qualquer um que atendesse sua prece, feita às pressas.
Bastaram poucas palavras santas e um brilho iluminou o rosto do desesperado, emoldurado pelo cabelo ainda mais claro, em virtude da luz. Era o dia nascendo. Os primeiros raios do Sol invadiam a taverna através das frestas na madeira e refletiam da lâmina fria do mestre das apostas para a face do coitado. Mas, o simples nascer do dia não impediria o morrer do homem.
Ciente de sua situação, o desesperado retomou sua reza:
Ave Maria que estais no céu, livrai-me do mal e dos pecadores, assim na terra como no bendito é o fruto do amém em vosso ventre!
Estava enfiado em trapos. As botas não tinham pontas e seus dedos sujos estavam à mostra, tocando o piso de madeira. Sua barba era tão mal feita quanto sua oração, contornando o rosto e se misturando ao cabelo emaranhado, em tom de castanho claro. A falta de bigode dava a ele um ar juvenil. Os olhos tinham inocência de quem nunca tivera grande comprometimento com alguma coisa, a ponto de ser privado da liberdade de andarilho festeiro.
O velho mestre das apostas não demonstrava piedade. Esbaforido, argumentou:   
Vô ti matá, seu cabra sem vergonha! Vendeu amuleto da sorte pra todo mundo dessas terra e todo mundo ganhô as aposta de mim!
O longo bigode trançado do velho balançava freneticamente quando ele falava, tão branco como o cabelo fino, escorrendo por suas costas encurvadas. Era calvo no topo da cabeça. Seus braços, expostos graças à camiseta curta, eram quase tão desprovidos de carne quanto o punho de sua espada de lâmina afiada. No bolso da camiseta, ele tinha um baralho e metade da primeira carta estava à mostra. Era um ás de copas. E ele não tinha outro coração. Numa tanga, amarrada acima da calça e abaixo da pança proeminente e discrepante no corpo magrelo, havia o naipe de paus bordado. Era um aviso sobre como o sexo era, para ele, um mero jogo de interesses; embora estivesse há décadas fora dessas partidas. Nos calçados, havia naipes de espadas, bem costurados, para sempre se lembrar de levar uma arma aonde quer que fosse. Enfiada numa faixa amarrada na cabeça, havia uma carta, também escolhida de forma proposital. Era um sete de ouros. Se o arco-íris tinha sete cores, e levava a um pote de ouro, aquela carta era a melhor escolha, havia lhe ensinado seu finado pai. Os conselhos do pai seguiam todos nessa linha. Chegou a dizer, certa vez:
Quando alguém lhe perguntar o que você tem na cabeça, filho, aponte o ouro. Só isso importa. Aposte a vida de um parente, se precisar.
Ironicamente, o jovem, ainda aspirante a mestre das apostas, fez exatamente isso. E os conselhos de seu pai sobre os naipes terminaram ali, assim como sua vida.
Antes de atingir o auge de suas vitórias, o mestre das apostas havia sofrido derrotas. Agora voltaram a superar as vitórias, numa frequência perigosa. Não querendo admitir sua falta de bom senso, cada vez mais escasso, resolveu culpar o vendedor de amuletos da sorte.
  Tô pobre, fudido e quase falido por sua culpa, seu fêdaputa! Só me restô cem moeda, seu peste sem mãe! – o velho esbravejou, indignado com a pobreza iminente.
A moeda do rei Valdrick, chamada de valois, já havia se tornado a única em todos os reinos, a partir do tratado assinado no ano anterior. E quando alguém dizia ter uma moeda, estava se referindo a uma moeda de bronze, equivalente a um valois. O mestre, em verdade, não tinha cem moedas em sua bolsinha de couro. Tinha dez moedas de prata, equivalentes a cem valois. Enquanto uma moeda de prata valia dez valois, uma de ouro valia cem.
O mestre poderia ter uma moeda de ouro, ao invés de dez de prata, mas, assim como possuir apenas moedas de bronze fazia o velho se sentir mais perto da pobreza, possuir apenas uma moeda produziria a mesma sensação, mesmo sendo uma de ouro. Precisava ouvir o tilintar dos metais dentro duma bolsinha de couro pra se sentir no jogo da vida. Cada vez mais, porém, tinha menos e, enfurecido, continuou a ameaçar o coitado:
Cê vai morrê é agora! E num dianta tentá fugi, caus de quê, tenho lá fora mais de dez capanga qui pega pra capá. Seje homi, disgramado! Num chora não! Vai aprendê a não mexê com o mestre das aposta!
Você disse, mestre das apostas? – perguntou uma voz arrastada.
Por um instante, a voz pareceu vir do além. Não pertencia a nenhum dos homens bêbados, sentados às mesas ou escorados nas paredes ao redor. Não pertencia, ainda, ao taverneiro, à  atendente, ao mestre das apostas e nem mesmo à rosa; assim como não pertencia ao homem ameaçado, ainda rezando ajoelhado. Era uma voz levemente arrastada, somente ouvida graças ao silêncio feito pelos presentes, atentos e à espera da execução. Dificilmente alguém ali teria descoberto de onde haviam vindo as palavras. Um movimento atrás dos barris de vinho vazios, porém, provou não se tratar de uma voz do além e denunciou sua origem. Nem mesmo a atendente, atenta a tudo, se lembrava do pirata caído ali atrás.
O mestre magrelo das apostas avaliou, de cima a baixo, o pirata. Bastante desconfiado, quis saber:
– Sô eu mesmo. Quem perguntô?
O pirata se levantava lentamente, enquanto bebia um último gole de rum duma garrafa; como se a embriaguez, notória, não fosse suficiente.
Aos olhos do mestre, o pirata não pareceu ameaçador. Usava uma bandana preta. O cabelo solto era ornado com pequenos crânios de prata e emoldurava a cara suja. O cavanhaque tornava as caretas do pirata mais evidentes, quando um músculo ou outro era esticado. Trajava um sobretudo e um chapéu de três pontas.  A pedra negra pendurada no pescoço dele balançou e o pirata gentilmente a estabilizou, embora ninguém tenha reparado nesse gesto. A única coisa a quase chamar a atenção do mestre das apostas foi a fivela de prata do cinto do tal pirata: um crânio alado. Onde ele teria ouvido falar disso antes? Teria? Mas, a mente do mestre já dava sinais de falhar desde o seu nascimento e, recentemente, já quase não se lembrava de fatos recentes, ainda menos de fatos ocorridos um ano atrás.
O esfarrapado homem ajoelhado, porém, abriu um sorriso largo e exclamou:
– Ônix Pedra-Negra!
O pirata ergueu mão, como se acusasse ser ele mesmo. Imediatamente, porém, voltou a procurar sua garrafa favorita de rum, largando a vazia de lado. Não dava muita atenção aos dois homens no centro da taverna; e a mais ninguém ali, para ser sincero.
O velho mestre não relacionou o nome a algum feito e como não era dotado de paciência, perguntou:
– O que cê qué cumigo, Pirata Praga-Negra? –Esbugalhou momentaneamente os olhos, como se precisasse fazer isso para sua visão alcançar o outro lado da taverna. Mas, por fim, decidiu não se preocupar com o pirata e avisou: – Tô ocupado. – E voltou a mirar o homem ajoelhado.
– Quero alertá-lo – disse Ônix Pedra-Negra, mesmo assim.  Soergueu as sobrancelhas ao avaliar, aliviado, a garrafa recém encontrada. Sorrindo, completou: – Não vou lhe culpar, porém, se preferir terminar os assuntos em andamento.
O homem ajoelhado demonstrou decepção. O mestre das apostas deixou escapar uma risadinha de prazer, ao erguer sua espada. A lâmina brilhou, pronta para descer na nuca, que nunca antes havia suado tanto como naquele instante.
– Mas há quem diga não merecer o título de mestre das apostas. – Ônix deixou escapar, antes de abrir a nova garrafa de rum.
O mestre das apostas espichou o pescoço, colocando a cabeça entre os braços erguidos, para enxergar o pirata que, ao conseguir a atenção do abestalhado homem armado, acabou deixando o gole de rum da nova garrafa para depois, e continuou dizendo:
Dizem não merecer tal título, pois, cada vez mais, anda apostando menos. Sou até  capaz de apostar quarenta moedas que você não aposta sessenta moedas em meu jogo favorito.
Incrédulo, o mestre perguntou:
Cê apostô que eu num vô apostá? – Baixava lentamente a espada. A mente tentando processar, de forma ainda mais lenta, as palavras do pirata. E Ônix continuou:
  Exato. Então? Devo-lhe quarenta moedas ou você me deve? 
A conclusão da mente perturbada do mestre das apostas, foi: “Se eu num apostá, eu perdo quarenta moeda! Mas preu ganhá, basta eu apostá. Pirata idiota!”
Sorrindo, o velho avisou:
Cê perdeu, Prega-Negra! Vô apostá. Agora mi dá minhas quarenta!
Lhe darei as quarenta moedas, mas, espere disse o pirata, com um breve sorriso no canto esquerdo da boca, quase tão imperceptível como suas duas espadas, penduradas na cintura, não completamente cobertas por seu sobretudo. Afinal, se me vencer em meu jogo, receberá, de uma só vez, cem moedas. As quarenta, da primeira aposta já vencida por ti, e mais sessenta, da segunda aposta, caso venha a vencer.
Os olhos do mestre brilharam. Ônix Pedra-Negra notou e continuou:
Somando com as cem moedas que disse ter, ficará, então, com duzentas. Enquanto, se eu vencer, recebo apenas vinte moedas, pois lhe devo quarenta das sessenta que nem sei se vou ganhar.
O mestre estava confuso. Da forma como o pirata colocava, porém, lhe pareceu uma boa notícia. Ônix realmente parecia arrependido ao dizer:
– Só agora percebo minha falta de esperteza. Mas somos homens de palavra e, por isso, vou até o fim.
O mestre das apostas, àquela altura, nem tinha mais pressa em matar o homem ajoelhado e aliviado; assim como ninguém mais ali tinha pressa em assistir a morte do coitado.
 O velho apostador podia não se lembrar, mas todos os outros ali conheciam a fama de Ônix Pedra-Negra. Era o suficiente para esperarem por uma diversão ainda maior. Mortes, eles viam todos os dias. O pirata em ação, não.

Naquele dia, o mestre das apostas acordou disposto a mudar sua sorte, acabando com aquele a quem julgava ser a causa de sua maré de azar. E tudo indicava o fim desta. Isso, no entanto, não resultaria no perdão para o homem/causa de sua má fase. O velho apenas se sentiria menos desesperado com boas moedas no bolso e, assim, poderia se ater a pequenos detalhes da morte do coitado e se divertir por algumas horas, ao se lembrar deles. Sua memória era claudicante e não duraria muito, de qualquer forma.
Uma súbita pontada de dúvida, porém, atravessou a mente lenta do mestre. Somente naquele momento notara algo deveras importante: ter aceitado apostar num jogo até então não revelado. A dúvida levou o sorriso e trouxe uma inquietação desconcertante. E, ressabiado, o velho perguntou:
Má qualé seu jogo mais favorito, pirata?  
Um breve sorriso despontou novamente no canto esquerdo da boca de Ônix. Ele sentia a expectativa refletida em todos os olhares ao seu redor. Sabia o quanto era admirado pelos bêbados ali. Isso, no entanto, não o deixava nervoso; pelo contrário. Ele tinha um nome pelo qual zelar e não decepcionaria seus admiradores. Até aquele dia, brindavam ao maior feito do pirata Pedra-Negra...

    
Capítulo II – O príncipe

Era uma noite de cerimônias e o rei Ulysses de Valdrick tinha muitos visitantes importantes em seu castelo. Muitos espetáculos seriam apresentados, em comemoração ao tratado assinado. O mais esperado deles era o enforcamento de um pirata, devidamente aprisionado numa das celas. Tal morte estava marcada para a manhã seguinte.

O ano era 523 do Novo Tempo. Um ano antes do encontro de Ônix com o mestre das apostas.

O Rei Valdrick estava sentado em seu trono, no salão real, lotado de nobres. Ele tinha cabelo longo e grisalho. A barba, bem aparada, também era cinza, em concordância com a prata da armadura e coroa; escolhidas para a ocasião. A única cor estava em sua capa, de um azul escuro.
No trono, à esquerda do rei, estava a rainha.  Trajava um vestido verde escuro, adornado com prata e pérolas. A coroa, como a do rei, era composta por finas linhas do claro metal, entrelaçadas para exibir desenhos exuberantes acima da linha da cabeça. O cabelo dela era castanho, evidenciando a grande diferença de idade em relação ao marido. Os braços desnudos da rainha eram ornados com braceletes, inspirados nas coroas.
Ao lado de cada soberano havia um soldado. Vestiam armaduras reluzentes e capas pretas. As indumentárias dos soldados da Elite Especial. Os elmos eram bem fechados, havendo aberturas apenas na linha dos olhos, através das quais os sentinelas espiavam o mundo. 
O terceiro trono, à direita do rei, estava vazio. Era destinado ao príncipe Aleck de Valdrick.
O músico principal, num patamar abaixo dos tronos, tocava uma última música introdutória, depois da qual o rei não poderia mais protelar seu pronunciamento inicial e, consequentemente, a abertura da celebração.
 Os nobres convidados, dois patamares abaixo dos tronos, bebericavam em suas taças refinadas. O príncipe Aleck ocuparia seu lugar? O rei se perguntou, olhando para o trono vazio. Seu olhar pousou ali e perdeu-se. A recordação do encontro com o filho, no fim da tarde, veio numa fração de segundo.

A conversa se tornou uma discussão quando o filho afirmou:
– Não estarei presente na celebração desta noite, meu pai.
– Por quê? Me diga, Aleck, por que insiste em ignorar seu real papel? – perguntou o rei. Estavam na torre mais alta do castelo.
– E qual é meu papel? – o príncipe encarou o pai.
– Ser um rei. Para início de conversa – respondeu o mais velho, com o pesar dos anos vividos a temperar suas palavras. O longo cabelo grisalho estava solto, e balançava ao vento. O rei afastou a pesada capa, passou a mão pela curta barba acinzentada e continuou: – Meu tempo está no fim. Ele se põe no oeste da minha existência. O seu está por vir. O povo espera por ti.
– E por que teme a noite, meu pai? – perguntou o jovem príncipe, entristecido. Não tinha pêlos no rosto de pele clara.  O cabelo negro estava muito bem preso numa trança longa, descendo pelas costas. Tinha o olhar da mãe. Trajava uma simples bata branca e calças escuras. Presa ao cinto estava sua estimada espada leve. – Por que cada um não pode lançar mão de uma tocha e iluminar o próprio caminho?
– Eles não estão prontos para isso, meu filho – afirmou o velho. A certeza pareceu amarga na própria língua. Mas acreditava nela.
– Estão mais prontos do que eu para ser um rei! – retrucou Aleck de Valdrick. A convicção soberana do filho teria feito o velho pai rir, se o rei não houvesse abdicado de tal habilidade há tempos. Deixou o filho continuar o desabafo: – E se não estou pronto para governar um reino, quem dirá ser a luz de toda a humanidade!
O semblante de Ulysses endureceu e ele perguntou:
– Quer negar seu destino?
– Não posso ser a reencarnação de Dáverus – Aleck não conseguia aceitar a responsabilidade de ser um deus, adorado por milhares de pessoas.
O velho Valdrick, mais uma vez, afirmou:
– A profecia é exata. 
Todos conheciam a profecia. Até quem não acreditava nela, como Aleck.

“Dáverus renascerá após trezentos anos de repouso. Filho de Ulysses de Valdrick, o maior de todos os reis daqueles dias. Em seu aniversário de vigésimo sétimo ano, vejo o anel de cristal em seu dedo. Suas palavras eu ouço. Sua vida será repleta de dores e alegrias. Em sua alma, muito peso. Terá poder para salvar a humanidade de um fim pavoroso. Quando o povo estiver prestes a desistir de acreditar, ficará, então, surpreso. Dáverus regressará...”

Aleck forçou um riso nervoso e falou:
– Tal profecia foi repetida através dos séculos. Seu nome, meu pai, foi escolhido por meu avô. Não sabemos se ele acreditava no seu destino em se tornar o maior rei dessa geração, ou se ele quis fazer isso acontecer.
– Está questionando os méritos de minhas conquistas? – O olhar do rei era duro.
O filho notou a ofensa e tentou amenizar, sem voltar atrás:
– Honestamente? A profecia de Dáverus não valida seu nome. Ela já existia antes mesmo de o senhor nascer.
Aleck mirou a paisagem. O pai lhe deu tempo para pensar. Ulysses era um incrível estrategista. Nasceu pobre. Chegar até ali nada tinha a ver com a profecia. Por muitos anos, inclusive, ocultou seu nome com o apelido de guerra. Quando mero soldado, era conhecido como o Lobo. Ulysses tinha um temperamento forte e cresceu colecionando inimigos, até torná-los submissos através de incríveis feitos. Não queria chamar atenção para si mesmo, antes do momento certo. Mas nunca duvidou ser o rei da profecia; a ser responsável pela reencarnação de um deus.
O jovem príncipe se perguntou como seria se acreditasse ser Dáverus renascido com tanta certeza quanto a de seu pai sobre o assunto. Não conseguia acreditar, porém.
O silêncio não resolveria nada e Aleck voltou a encarar o pai. O rei, no entanto, falou antes:
– Faltam ainda cinco anos, segundo a profecia, para seus poderes divinos despertarem. Até lá, é justo não se ver como um deus. Você é meu único filho, porém. Não terei outro; isso está claro para mim. E, depois de hoje, me tornarei o maior rei dessa geração.
Ulysses de Valdrick estava certo em afirmar não poder ter outro filho. Uma doença o havia tornado infértil. E, graças ao tratado proposto para aquela noite, seu poder sobre todos os povos seria insuperável.
Exasperado, Aleck questionou:
– E se eu for Dáverus reencarnado e não quiser assumir a responsabilidade de salvar a humanidade do sei-lá-o-quê de terrível que está por vir? 
– E o que gostaria de fazer de sua vida? – perguntou o velho Ulysses, deixando a experiência falar mais alto. Às vezes, para ganhar muito terreno, é preciso ceder um pouco.
O príncipe suspirou e foi sincero ao dizer, mordendo a isca:
– Encontrar um verdadeiro amor e viver de forma simples. Um dia de cada vez. Como se cada um deles fosse o último e também o primeiro. Intensamente simples. Minha espada e minha vontade construiriam meu caminho de acordo com meus verdadeiros méritos. Viver uma imensa aventura. Quero conhecer o mundo e as pessoas; dos mais variados pontos de vista. Quando encontrar meu fim, quero olhar para trás e me orgulhar. Não quero ser um deus. Quero poder morrer facilmente, para valorizar cada novo dia de vida. Só lamenta a morte quem não viveu de verdade. Quero morrer com brilho nos olhos e um sorriso nos lábios... e não com o olhar pesado e lábios inexpressivos, depois de tantos anos de sacrifícios.
  – Sim, fiz meus sacrifícios, meu filho – respondeu o velho. O olhar pesado acima de lábios inexpressivos. – Você não pode imaginar quantos. Assim como não faz idéia da realidade do mundo. Acredita ser um espadachim bom o suficiente para garantir sua vida?
– Ninguém, neste castelo ou fora dele, me derrota faz anos – o jovem príncipe disse. E era verdade.
– Evidentemente. Todos sabem quem você é. Ninguém arriscaria lhe ferir – o velho rei foi cruel, sem perceber. Há muitas formas de ferir alguém. E o orgulho de Aleck o foi, quando o pai falou: – Não sobreviveria numa luta de verdade, tenho certeza. Quanto ao amor, já está  compromissado com a filha de Raguir, uma princesa encantadora, acredite. Precisa aceitar seu destino. 
Mais uma discussão foi trazida pelo pai e o filho perguntou, admirado:
– Sequer a conheço. Como espera minha aceitação?
Ulysses não respondeu. Limitou-se a dizer:
– Sua imaturidade, aos vinte e dois anos, me assusta, Aleck.
– Para você, meu pai, sempre serei imaturo.
– Quer me provar o contrário? Quer conquistar meu respeito? Compareça  à nossa celebração hoje e não precisará se casar com a filha de Raguir. Tem minha palavra. Esse tratado é o mais importante de minha vida e é o alicerce da sua. Se comprometa a mantê-lo, supervisionando-o pessoalmente, e me darei por satisfeito. 
Dito isso, o rei Ulysses saiu, deixando o jovem príncipe Aleck com seus pensamentos.
 Era típico do velho pai. Se Aleck não comparecesse, estaria dando provas de imaturidade e, para completar, não estaria livre do casamento com a filha de Raguir. Por outro lado, se comparecesse, não estaria livre de governar aquele reino. Aquele tratado o daria poder suficiente para tomar decisões e definir o destino de toda a humanidade. Ficou enjoado só de imaginar.
Pela primeira vez, o príncipe considerou a profecia como verdade. Uma verdade metafórica, ao menos. Talvez o poder mencionado na profecia não fosse o poder de rasgar o céu, erguer montanhas, voar ou viver eternamente. Acabou descartando a ideia, no entanto.   
Aleck de Valdrick desejava simplesmente ser livre, e as opções do pai não lhe pareciam opções. Ulysses de Valdrick jamais entenderia. Nunca se casou por amor, nenhuma das duas vezes. A mãe de Aleck, falecida anos atrás, era uma ótima companheira para o rei, tanto quanto a atual. As duas haviam ajudado o rei a fortalecer alianças.
A noite caiu juntamente com lágrimas, e uma frase do pai ecoou na mente do jovem filho: “Esse tratado é o mais importante de minha vida.”; e Aleck concluiu: “Mais importante do que a felicidade de seu filho.”
O rei Ulysses de Valdrick estava certo em sua afirmação de Aleck não poder imaginar os sacrifícios feitos pelo pai. O velho rei, por outro lado, não podia imaginar um sacrifício maior, prestes a ocorrer em sua vida.   

O rei respirou fundo, ao final da bela música executada um patamar abaixo. Em algum momento teria de justificar a ausência do príncipe. Com a desculpa certa, porém, não chegaria a ser um problema. Mas não precisava falar disso de imediato e pronunciou:
– Bem-vindos a essa celebração, nobres amigos. Fico feliz em recebê-los para comemorar o marco inicial de uma nova era para nosso reino. As novas leis já  varrem a criminalidade como uma sujeira que nunca deveria ter sido tolerada. E a partir de hoje, com o tratado aqui assinado, todos vocês desfrutarão da segurança de um rei. Portanto, desfrutem também de minha diversão.
Os músicos iniciaram a música ensaiada. O rei sorriu para sua esposa e ela inclinou a cabeça. Era uma exuberante mulher, vinte anos mais nova. Ostentava um penteado extremamente trabalhado em meio à cora. O vestido salientava a beleza de seu corpo. O rei sabia o quanto era invejado por ter aquela mulher e isso lhe dava certo prazer. A rainha não esperava nada além de seu rei. Era, literalmente, uma relação de aparências.
A primeira apresentação do espetáculo escolhido para a ocasião era o bobo da corte. O artista era tido como o mais hábil malabarista de todos os reinos. Sua roupa era escura, mas havia tiras de panos coloridos e brilhantes pendurados nas extremidades do chapéu de muitas pontas, assim como ao redor dos seus joelhos, cotovelos e cintura. O rosto estava completamente coberto por uma máscara branca, sorridente.
Os nobres foram tomados por orgulho e fascínio. Os espetáculos de Valdrick exaltavam a exuberância destinada somente aos privilegiados da mais alta corte. A mente do rei, no entanto, estava absorta em pensamentos sobre o filho, alheia ao artista em cena.
Dois bastões eram girados com maestria pelo artista, de forma deslumbrante. Ulysses de Valdrick sequer notava. Aleck não foi mais visto desde a conversa ao fim da tarde. A alma do rei estava inquieta. A ausência do filho era uma forma de aceitação do casamento? O rei questionou-se. Seria melhor assim, pensou. Aquela celebração e o tratado eram importantes. O casamento acertado, no entanto, era muito mais; embora deixasse o filho pensar o contrário, para persuadi-lo a escolher a união com a princesa.
Os convidados, ao contrário do rei, sequer piscavam, entretidos com o bobo da corte. O artista havia desenrolado fitas, presas nas pontas dos bastões. Círculos e mais círculos eram desenhados no ar, pelas fitas, em cores tão vivas quanto seus movimentos. Os riscos coloridos passavam ante a face branca da máscara do artista.
O rei ainda estava absorto em seus devaneios, quando o artista, já  sem seus bastões, aproximou-se da rainha e lhe ofertou uma rosa. A primeira apresentação estava no fim.
A rainha sorriu e aceitou o presente. O rei aprumou-se para aplaudir, enquanto o artista voltava para centro do patamar inferior ao dos soberanos e superior ao dos convidados. O bobo da corte pegou seus bastões e executou o último movimento, terminando em sincronia com a música.
A rainha inalou o perfume da rosa.
– Não! – gritou o terceiro soldado da Elite Especial, ao entrar no salão. Tarde demais. A rainha tombou.
      O rei amparou sua esposa rapidamente e olhou, suplicante, para o soldado recém-chegado. Esperava uma explicação e ele não tardou em cedê-la, dizendo:
– Acabo de encontrar o artista desacordado na adega. Esse aí é  um impostor. – Apontou para o homem de máscara, estático em sua posição final da apresentação. O rei entendeu o óbvio: havia alguma poção na rosa. Enfurecido, gritou:
– Vocês deixaram um assassino entrar aqui?!
– Ele pode ter entrado, meu rei, mas não vai sair – o soldado colocou o elmo e sacou a espada, se igualando aos outros dois. Os três cercavam o intruso de rosto completamente coberto pela máscara branca e sorridente.
– Está tão errado quanto seu rei – disse a voz por baixo da máscara. O sorriso congelado no falso rosto era perturbador. O homem levantou-se lentamente e continuou: – Sim, vou sair daqui, e, não, não sou assassino. A rainha apenas dormirá por algumas horas e despertará  com uma bela dor de cabeça. Quando seu rei procurá-la à noite, para assuntos conjugais, ao menos dessa vez ela não precisará  mentir, para se livrar do fardo de agradar a um velhote...
– Como ousa?! – o rei gritou. Os soldados se posicionaram para atacar.
– Como ouso vir aqui mostrar que não está a salvo em seu próprio trono? – a voz debaixo da máscara indagou. – Como ouso vir aqui lhe dar uma dose do mesmo terror imposto ao povo? Como ouso desmascará-lo?
O rei estufou o peito e proclamou:
– Tornou-se apenas mais um voluntário aos castigos listados em minhas leis para criminosos como você! O pirata, encarcerado em meu calabouço, não será enforcado sozinho amanhã! Sua ousadia será punida com a morte. Essa é a minha palavra e meu nome depende dela. Não haverá clemência!
Os soldados esperavam o comando do rei. O invasor, no entanto, foi mais rápido em responder, com entonação séria atrás do sorriso estático da máscara:
– Lamento desapontá-lo, ó rei, mas estou aqui apenas para esclarecer a seus nobres convidados o que suas mentes obtusas não são capazes de entenderem sozinhas. Estou aqui para dizer a eles como suas leis impedem o povo de ter uma vida digna, o impelindo a roubar ou trapacear. Você cria os ladrões para poder oferecer proteção aos nobres. Uma negociação fácil, dada a fragilidade dos criminosos cultivados por ti.  Estou aqui para deixar bem claro aos nobres presentes: todos nós usamos máscaras. O soberano rei Ulysses de Valdrick não é uma exceção. O que ele dá com uma mão, tira com a outra.
– Prendam-no! – o rei deu a ordem tão esperada pelos homens em armaduras reluzentes. – Quero a morte dele em praça pública pela manhã!
– Ah! Sim! A Elite Especial! – Os olhos no fundo da máscara miravam os olhos nos fundos dos elmos.  – Os três melhores soldados do rei, versados nas artes antigas de combate. É uma honra merecer tanta atenção. Em respeito ao respeito que tenho por vocês, concedo-lhes um presente: a vida.
Os soldados continuaram a aproximação, ainda mais obstinados ao combate, após evidente provocação. O mascarado continuou, no entanto, como quem estava em plena vantagem:
– A vida de cada um de vocês vale tão pouco assim, para recusarem? Sejam sensatos. Se eu perder, é seu rei quem vence. Mas, se eu vencer; são vocês quem perdem.
Os soldados sequer cogitaram a possibilidade de não lutar.
– A escolha é de vocês – o invasor insistiu. – Não transfiram a responsabilidade de seus atos para o seu rei. Não é ele quem está empunhando uma espada agora. Eu escolho a vida. Minha escolha só irá  contra a de vocês se escolherem a morte.
As mãos dos soldados seguravam com firmeza suas espadas. No fundo dos elmos, via-se olhares de determinação. As capas foram desprendidas das ombreiras de metal. O mascarado entendeu a resposta e segurou com firmeza os dois bastões da apresentação, agradecido por serem de metal. Como imaginou desde o início, sua provocação foi o suficiente para lutarem com todas as suas forças; como o mascarado desejava. Era o momento de provar suas perícias de combate.
Dois dos oponentes atacaram alternadamente. O homem de máscara defendeu-se. E, por um bom tempo, só conseguiu fazer isso. Quando o terceiro soldado entrou na batalha, o misterioso guerreiro encontrou dificuldade em se defender e muito mais em atacar. Conseguiu evitar ataques letais. Muitos golpes, porém, o atingiram e ele terminou desarmado. Ainda assim, conseguiu derrubar um de seus adversários.
 Os dois soldados de pé atacaram em sincronismo e o mascarado usou uma manobra arriscada, pegando o punho de uma das espadas, descendo em sua direção, para bloquear o ataque do outro soldado. Para tal, girou o corpo, ficando de frente para o soldado a ser bloqueado e de costas para o outro soldado.
O invasor teve êxito na façanha e atingiu, com a parte de trás da cabeça, o rosto do soldado às suas costas. A espada foi largada pelo homem ferido e ficou na mão do mascarado. O nariz esmagado atrás do elmo sangrou. O sangue escorreu pelo queixo do elmo. Aquele soldado não conseguiria enxergar nada por um bom tempo, em virtude das inevitáveis lágrimas.
 O mascarado tinha bloqueado o ataque do outro e contra-atacado com sucesso. Foi além, no entanto. No processo, conseguiu roubar a segunda espada, ao desferir um corte certeiro no segundo soldado, com a lâmina da primeira espada roubada por ele. O ponto vulnerável do corpo, não coberto completamente pela armadura, sangrou.
Os dois soldados, bastante feridos, não teriam impedido a fuga do mascarado. O terceiro oponente, no entanto, colocou-se de pé entre ele e a saída.

O homem de armadura atacou primeiro, mas foram precisos muitos movimentos até o mascarado perder uma das espadas e o equilíbrio, parando de costas para o oponente. O invasor estava vulnerável e seu adversário não hesitou em atacar. O golpe mirava o alto da cabeça do mascarado, mas não chegou a atingi-la.
O invasor se defendeu com a espada erguida em tempo, sem olhar para trás. Segurou o pulso do oponente e girou desferindo um golpe entre as placas da armadura. O adversário se curvou e sangue jorrou no chão liso.
Os três guerreiros estavam caídos. Os convidados estavam perplexos. O rei engoliu em seco e perguntou ao melhor guerreiro já visto por ele:
 – Quem é você?
 – Eu agora poderia, em homenagem ao passado esquecido, fazer uma apresentação poética de quem sou, pautada na incidência da letra V – respondeu a misteriosa voz. –Mas, a resposta verdadeiramente válida, via voz veemente, vinda veloz e vertente é: ainda não descobri. Nunca me foi permitido.  Precisei assumir vários papéis no grande palco da vida. Muitas máscaras já passaram por meu rosto. Atualmente sou um amigo de suas almas. Sou eu quem, no mar, intercepta os navios reais e tira, de todos vocês, o ouro tirado dos povos escravizados. O prazer de seus nobres é sustentado pelo suor de pessoas miseráveis. As riquezas deles, e as suas, são uma vergonha para todos vocês e cabe a mim livrá-los dela. O destino dessas riquezas? Cedo aos povos miseráveis, na esperança de dar a eles a oportunidade de descobrirem quem são. Quanto a mim, se quer mesmo um nome... pode me chamar de Ônix Pedra-Negra, o pirata.
O visitante retirou seu disfarce e revelou-se, com a audácia estampada em sua face. O pirata ostentava, também, o cinto com a fivela de prata, um crânio no centro de um par de asas, tão inesquecível como a proeza realizada para conquistá-la, um ano antes. Isso fazia dele o segundo pirata mais procurado. Tal proeza, no entanto, seria eclipsada pelo grande feito daquela noite, no castelo de Valdrick, e, um ano depois, ainda seria lembrada por bêbados da Taverna do Coelho Caolho. Não por todos, é claro. O mestre das apostas bem gostaria de ter se lembrado desses fatos.
Os piratas haviam se tornado uma praga aos olhos do rei, mas aquele o havia provocado de forma pessoal. Para ter certeza, o rei perguntou:
– Ônix Pedra-Negra? Aquele que, há um ano, invadiu a fortaleza de Agures?
– Apenas coloquei um fim às depravações daquele velho – Ônix respondeu, com falsa modéstia. – Nenhuma garotinha pobre será violentada por ele, agora. E não venha me culpar por ter perdido seu maior comerciante neste reino. Após minha invasão à fortaleza de Agures, todos os nobres estremeceram diante da ameaça, no caso, eu, e, graças a isso, assinaram o tratado de hoje. Por isso estou aqui. Detesto ser usado. – Ele fez uma pausa. Pensando melhor, acrescentou: – A menos que seja por lindas donzelas em busca de celebrar a vida,  livrando-se, juntamente com suas roupas, de suas entristecidas rotinas existenciais meramente contemplativas e patéticas, proporcionadas por seus nobres. Não satisfazer suas mulheres parece ser uma habilidade inerente à alta classe, dentre outras fraquezas.
Murmúrios indignados varreram o salão. O pirata continuou, porém:
– Estou aqui para deixar duas coisas bem claras aos nobres presentes: pagaram pouco por sua segurança. E pagarão muito caro por sua estupidez!
 Os dois primeiros soldados da Elite Especial a caírem estavam bem menos feridos, em relação ao terceiro. Mas, foi esse último que se levantou e se colocou diante do pirata.
 Nos olhos de Ônix, havia admiração pela determinação daquele guerreiro, com dificuldades evidentes em se manter de pé. Um leve pesar apoderou-se do pirata, quando ele esquivou de dois golpes, antes de atingir, pela derradeira vez, o oponente. Muito mais sangue foi derramado no salão de Valdrick.
Ônix esperou o adversário cair. Antes da queda, porém, o obstinado guerreiro tentou atingir a face próxima do pirata, com uma cabeçada de desespero. O golpe foi facilmente aparado por uma mão de Pedra-Negra.  Segurando firme o elmo do guerreiro, o pirata viu o admirável lutador cair de joelhos. O elmo ficou em sua mão e todos puderam ver o sangue escorrer do canto da boca do homem ferido...  a boca do príncipe.
– Aleck... – o rei balbuciou ao reconhecer, no corpo prestes a tombar, o filho.
– Eu descobri...  haveria um atentando contra o senhor. – Eram as últimas palavras do príncipe Aleck. – ... não lhe contei... queria provar ser capaz de viver com minha arte da espada... não pude viver como eu quis, meu pai... mas, ao menos, poderei morrer...
O corpo do príncipe Aleck de Valdrick tombou e, naquele dia, Ônix Pedra-Negra feriu mortalmente a alma do homem mais poderoso e odiado do mundo, ao tirar seu herdeiro. E isso ainda seria lembrado, muito tempo depois, como seu maior feito.
Muito embora Ônix não se orgulhasse do ocorrido, tão pouco se envergonhava. A escolha do jovem príncipe, afinal, em ter estado ali, empunhando uma espada, fazia dele o principal responsável por aquele desfecho; aos olhos do pirata. 
Pedra-Negra não esperou para descobrir a opinião do rei. Tratou de fugir em disparada. Saber o momento de entrar e sair de uma cena era um dos seus pontos fortes.


Capítulo III - Perder para ganhar

Má qualé seu jogo mais favorito, pirata?  
Um breve sorriso despontou novamente no canto esquerdo da boca de Ônix. Ele sentia a expectativa refletida em todos os olhares ao seu redor. Sabia o quanto era admirado pelos bêbados ali. Isso, no entanto, não o deixava nervoso; pelo contrário. Ele tinha um nome pelo qual zelar e não decepcionaria seus admiradores. Até aquele dia, brindavam ao maior feito do pirata Pedra-Negra: a morte do príncipe Aleck de Valdrick.
– Ah! Sim, meu jogo! – exclamou Ônix Pedra-Negra, fechando e pendurando, cuidadosamente, sua garrafa de rum no cinto. Depois, em passos cambaleantes, tirou seu chapéu de três pontas e o colocou bem afastado, virado de cabeça para baixo. Só depois voltou para o lado do mestre das apostas e do homem prometido de morte, ainda de joelhos no chão.
– Arremessarei uma carta. Se eu acertar dentro do chapéu, venço; se errar, perco. Simples assim – disse o pirata, ao tirar um baralho do bolso de seu sobretudo. Sorriu por um breve segundo, ao olhar o naipe da carta tirada na sorte, e falou: – Espadas. É sempre mais fácil arremessar espadas...
– Dessa distânça?! – perguntou, incrédulo, o mestre das apostas. Olhou para o chapéu bem longe, do outro lado da taverna. O pirata Ônix devia estar mais bêbado do que aparentava, concluiu. Pareceu ser bem fácil ganhar as prometidas moedas naquele jogo.
 – Realmente não parece justo – disse o pirata. Foi até  o chapéu e o colocou ainda mais afastado. Para voltar, o pirata deu passos largos, como se isso enfatizasse, e enfatizava, a imensa distância. – Agora sim. Posso mandar? – perguntou Ônix, já ao lado do mestre.
O velho olhou em silêncio para o chapéu por alguns segundos e depois mirou Ônix. Obviamente duvidava da sanidade do pirata. Pena? Não. O mestre das apostas não tinha. Se o pirata era louco, em breve seria um louco bem pobre.
– Pó mandá – disse o mestre, em tom solene. Ao ver o pirata sorrindo, confiantemente, no entanto, o mestre ficou incomodado. E se Ônix fosse habilidoso? Ele já não cambaleava. Girava a carta entre os dedos, quase hipnoticamente, demonstrando uma destreza admirável. Sua posição era firme. Tais observações trouxeram uma dúvida à mente claudicante do velho. A dúvida trouxe desespero. Quando Ônix estava prestes a arremessar a carta, o mestre gritou: – Não!!! Péra!... Num tô gostanu! Cê tá muito confiante!
– E por que não estaria? Nunca errei um arremesso de carta no chapéu – disse o pirata, mantendo a postura exata, pronto para arremessar.
Todos na taverna acompanhavam aquilo com interesse. Os três homens eram o centro das atenções: o pirata, o mestre das apostas e o prometido de morte, ainda ajoelhado.
– Nunca errô!? Nunca!? – O mestre passou nervosamente a mão no rosto suado. – Más num posso perdê!
– Mas já apostou e terá de ir até o fim, se não quiser fazer todos aqui duvidarem da segurança em fazer apostas com o mestre das apostas – disse Ônix.  O sorriso despontou no canto esquerdo da boca. Algumas risadas foram ouvidas ao fundo e o pirata continuou: – Seu nome está, literalmente, em jogo, mestre. Perder algumas moedas será o preço para não perder seu prestígio e condenar seu ofício. Aceitou apostar e terá de ir até o fim. Perder a aposta será ganhar o direito de continuar apostando. A única saída seria mudar a aposta. Mas você não tem interesse nisso. Ou quer apostar que eu vou acertar?
– Quero!
Por alguns segundos a taverna foi tomada por um silêncio estarrecedor. No instante seguinte, os bêbados ao redor riram sem compaixão. No entendimento do velho mestre, o deboche se devia ao fato de ser tarde demais para mudar a aposta. Ônix reforçou tal entendimento, ao dizer:
– Sinto muito. Para mudar sua aposta, de forma a te favorecer tanto assim, há uma taxa e você não estaria interessado.  
– Quanto?! – perguntou o mestre. O coração acelerado dentro do peito. Não custava perguntar. Ou custava?
– Quarenta moedas. É o preço para mudar a aposta – o pirata foi taxativo. – Adiantadas. É tudo o que posso fazer por você. O que me diz? Feito?
– Nunca errô?
– Nunca.
– Feito – o mestre separou as moedas e as entregou para Ônix. O pirata as jogou em um saquinho de couro e o guardou rapidamente no bolso.
– Agora pó manda! Pó manda! – exclamou o mestre, deveras empolgado.
– No três – disse Ônix, retomando sua postura inabalável.
– Um! – disse o mestre.
– Dois – disse o pirata.
– Três! – disse o jurado de morte.
O pirata arremessou a carta. Arremessar não descreve bem o movimento. O pirata simplesmente soltou a carta, displicentemente. Ela caiu aos seus pés, feito folha seca despencando de uma árvore; longe, muito longe, do chapéu. Caídos estavam: a carta e o queixo do mestre das apostas.
O breve silêncio precedeu, novamente, uma tempestade de gargalhadas. O falido mestre agachou para pegar a carta, inerte como seu coração dentro do peito.
– Tsc! Hoje parece não ser mesmo meu dia de sorte... quero dizer, seu dia de sorte... – comentou o pirata, nada complacente. – Pode me dar as sessenta moedas, por favor, antes de alguém aqui começar a desconfiar do valor de sua palavra.
Como um sonâmbulo, o mestre entregou ao pirata todo o resto das moedas de sua bolsa. Ônix fez uma reverência.
– Má cê nunca errô antes! – gritou o mestre, trêmulo de raiva, como se, somente naquele instante, percebesse como foi tapeado; embora não fosse o caso. Sua exaltação devia-se apenas à fúria de ter perdido num jogo praticamente vencido.
– E é verdade. Nunca errei um arremesso de carta no chapéu – assegurou o pirata. – Assim como é verdade eu nunca ter tentado antes...
– Má num posso ficá sem nada, seu filha duma puta!
– Ora, ainda tem seu nome, seu título, mais valioso do que cem moedas; creio – disse Pedra-Negra, balançando os saquinhos de moedas bem diante dos olhos marejados do mestre. – Mas algo acaba de me ocorrer. Que tal se, com estas cem moedas, eu comprar o perdão desse pobre coitado? – ele apontou para o homem de joelhos no chão. – Veja como estou sendo bondoso hoje, pois poderia pegar estas mesmas cem moedas e pagar para seus próprios capengas lá fora acabarem com você, para salvar o mesmo miserento em questão. Prefiro, porém, que todos nos tornemos amigos e entornemos muito rum goela abaixo. Não é uma boa ideia? Feito?
A simples possibilidade de reaver seu dinheiro, acalentou a alma do velho e fez seu coração voltar ao compasso.
– Feito – disse o mestre das apostas, ao estender a mão, ainda trêmula. Quando recebeu as moedas, não conseguiu conter as lágrimas e um sorriso, mesmo abafado.
– Isso merece comemoração! – exclamou o pirata, grato por não ter precisado desembainhar espada alguma.
O torturado homem se levantou, quando dois dos homens bêbados revelaram-se bardos; era uma dupla famosa até, Os Bardos Barbados. A taverna foi preenchida com uma canção. Todos foram embalados numa dança alegre, regada a muita bebida. Ônix pegou pela cintura a atendente, que atendia pelo nome de Gertrudes, e juntos giraram, alegremente.
A rechonchuda mulher tinha uma graciosidade natural. O belo rosto, entre as enormes tranças na cor de laranjas, ganhava ainda mais vida com seu sorriso. As sardas caiam-lhe muito bem. Era a mais atraente naquele lugar e isso não se devia apenas ao fato de ser a única mulher presente. A gargalhada dela era contagiante e parecia fazer parte da música, tão ritmada era.
O homem salvo entrelaçou seu braço no braço do mestre das apostas e eles também giraram, alegremente.
Muitos giros e muitos goles de rum depois, Ônix desabou numa cadeira, abraçando a garrafa de rum roubada, um pouco antes, da atendente. O mestre das apostas saiu da taverna abraçando seu dinheiro, quase não mais seu, um pouco antes. E o homem salvo que, pouco antes, estivera de joelhos a rezar, estava agora de pé, abraçando Gertrudes.
Ônix Pedra-Negra sorriu. Seu olhar era de quem acabava de pagar uma dívida. Seu amigo, Pierre, esse era o nome do jurado de morte, estava seguro. Para o pirata, a única ameaça pairando sobre Pierre, naquele momento, pela forma como ele segurava Gertrudes, era o tapa encaixado da mulher; tão bem conhecido pelo pirata.
Estava tudo bem, ele pensava.

@

Do lado de fora, cercado pelos seus capangas, o mestre das apostas contava suas moedas. Era bastante, mas não o suficiente para voltar ao círculo de apostas altas. Ele ia praguejar, quando uma sombra bloqueou a luz. Um homem encapuzado perguntou:
– Gostaria de ampliar sua fortuna?
– Eita pergunta besta – o mestre respondeu. – Quem num qué? Má  vô avisá duma veiz: se tentá me enganá, meus capanga vai te fatiá, antes do cê vê.
O capuz de couro marrom do recém chegado fazia parte de uma túnica sem mangas, aberta nas laterais, que terminava na altura da cintura, na parte da frente; e na altura dos joelhos na parte de trás. Na frente, abaixo do cinto, descia um tecido leve e marrom, para permitir movimentações mais amplas. O capuz quase lhe ocultava o rosto inteiro. Um sorriso cínico, no entanto, foi visto por todos quando ele respondeu:
– Você precisaria de muito capangas para me impedir de fazer algo. – Sem hesitar, enfiou a mão dentro de sua túnica de couro, deixando todos em alerta. Retirou dela, porém, um inofensivo cartaz ilustrado e continuou: – Assim como precisaria apenas me dizer onde posso encontrar esse sujeito para ganhar uma boa quantidade de moedas.
Na cara do velho mestre brotou um sorriso, que alargou-se e o fez largar de vez o receio em ajudar aquele mercenário. Mas ele fez algo que exigiu bastante esforço: ele pensou.
– Sabendo dessa recompensa toda – o velho mestre falou. –, vô é te cobrá cinco moeda de ouro pela informação.
– Não estou disposto a pagar tanto. Talvez três – o mercenário esclareceu. Eram trezentos valois e lhe pareceu justo.
– Quatro? – o mestre rebateu.
– Duzentas moedas – o mercenário arriscou.
– Fechado! – O mestre festejou. Seus homens ficaram inquietos; apesar de não dizerem nada. O mestre detestava ser interrompido em negociações, embora a conversão de bronze, prata ou ouro, para Valois, sempre o confundissem. Duzentas moedas de bronze equivaliam a vinte moedas de prata e a duas moedas de ouro, apenas. Fosse como fosse, era o dobro da quantia existente em sua bolsa naquele momento. Estava com saudade de ter moedas de ouro e isso o empolgava.
– Onde ele está? – o mercenário tinha pressa.
O mestre, no entanto, fechou a cara e falou:
– Péra! Posso mandá meus homi capturá o safado e ficá com a recompensa toda! – O mestre estava em seu melhor dia para pensar.
– Vejo que sabe onde o procurado está. Se não aceitar minha oferta, vou ter de arrancar a informação de você – disse o mercenário, tranquilo, embora cercado pelos homens fortes e armados do mestre. – Já lhe avisei: seus dez homens não conseguiriam me deter.
– Intão vamu apostá! – o mestre arriscou. – Se não derrotá meus capanga, vô ficá com a recompensa todinha, caus de quê vai sê eu que vô capturá o safado; já que ocê vai tá todo isfolado.  Má se vencê meus capanga, ti conto onde tá o safado e num precisa me pagá setenta moeda das duzenta que me ofereceu.
– Se eu vencer esses homens, então, só precisarei lhe pagar oitenta moedas de bronze? – o mercenário perguntou, astuto.
– Isso! – respondeu o mestre, feliz com sua esperteza; ao contrário de seus capangas, é claro.
– Combinado – o mercenário disse. Recuou e sacou a espada. Esperou, pacientemente, e falou: – Quando assim desejarem, bravos, mas inaptos, guerreiros.
Poucos minutos depois, alguns homens gemiam no chão. Outros estavam desacordados e havia também alguns sem tanta sorte. Ao mestre das apostas, oitenta moedas pareceu bastante justo. Apontou para a Taverna do Coelho Caolho, atrás dele.
– Ele tá aqui. Qué qui eu ti mostre?

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Do lado de dentro da Taverna do Coelho Caolho, Ônix Pedra-Negra ouviu o tapa dado em Pierre, por Gertrudes, ecoar. Não poderia ter dado a devida atenção, no entanto, mesmo desejando fazê-lo. Naquele momento, o pirata sentia um calafrio. O mundo ao redor nublou e todo som se distanciava, exceto um zunido paralisante.
Detestava quando acontecia, mas, ao menos naquele momento, estava fora de um contexto perigoso e não correria grande risco; acreditava. Já tinha passado por aquilo em situações piores; tinha de admitir.  
Não havia cura para tal condição, uma feiticeira havia lhe dito. Somente a pessoa que o condenou a isso poderia livrá-lo e ela não o faria. Tal feiticeira, porém, lhe preparou uma poção para amenizar os efeitos e a duração desses instantes de torpor.
Não lutar contra aquilo também ajudava a ser mais breve. O pirata havia aprendido. Por isso, se entregou à paralisia.
 Para qualquer um de fora, era um simples devaneio. Suas pernas não fraquejavam; seu corpo não tombava. Sua “ausência” sequer era notada, na maioria das vezes. Esperou ser assim, dessa vez também.
Esperava enxergar aquele mesmo cenário amigável, quando os sentidos fossem restaurados. No último instante, porém, teve a sensação de que todos os seus feitos anteriores culminariam, muito em breve, em algo grandioso. Embora não soubesse se seria um fracasso fenomenal ou um sucesso em igual proporção. Fosse como fosse, teria de esperar para constatar, mas não muito.


***

Olá. Agradeço por ter lido até aqui. Agradeceria ainda mais, se me mandasse qualquer consideração sobre o que leu. Seja comentando abaixo, seja pelo e-mail informado abaixo, seja como for. 


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