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William Morais
Apresenta:
Ônix
Revisão:
Sario Ferreira
(sarioferreira@gmail.com)
Renata Rodrigues
Capa:
William Morais
Todos os direitos
reservados e protegidos pela lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. É
proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios existentes ou que
venham a ser criados no futuro, sem a autorização prévia, por escrito, do
autor.
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com o autor: portalwillmor@gmail.com
Nota do autor:
Ônix é uma obra oriunda de uma possibilidade. Recorre a um possível futuro.
Uma única linha entre infinitas, num mar de universos paralelos.
Tal futuro, em tal universo, no entanto, nasceu a partir desse tempo
presente, neste universo.
Cada livro da Saga do Novo Tempo é um relato sobre alguns personagens
desse futuro. Cada livro é independente,
embora se complementem. Ônix é um deles.
O livro Ônix, entretanto, difere significativamente dos outros, por
traçar uma ponte entre esse possível futuro e o nosso tempo e ter a ousadia de
atravessá-la.
A ponte é alta. O livro Ônix é
uma vertiginosa e filosófica aventura pirata a se desdobrar na diversão. É um
ponto de partida numa jornada atemporal pelo universo do Novo Tempo. Entrelaça
o cotidiano com o fantástico na esperança de transformar os dois num só.
Não é para muitos. É para mim e
para quem há de ser...
Importante: Esta versão estendida do meu primeiro livro foi concluída em 2016, sete anos após a primeira versão. A demora é justificada pelo fato de eu me dedicar a outras artes, como esculturas e teatros. Também por isso, o lançamento desta versão só aconteceria no primeiro mês de 2018.
Quem conhece minha história sabe que
nos primeiros dias de tal ano, meu mundo desabou numa perda indescritível. Uma
provação para a qual eu não estava e nunca estaria preparado. Verdade seja
dita, este livro ganhou um novo significado e talvez eu tivesse vontade de
atualizá-lo para acentuar cada momento importante além das páginas, embora através
delas. Não o farei, porém.
Este livro é um registro mais puro do amor que encontrei
neste mundo, da forma como está escrito. Sem o peso da perda, talvez ele seja
uma lembrança constante de um amor que não terá fim e de que a morte é uma
separação temporária.
Assim sendo, leve em consideração
que tudo o que será lido daqui em diante, foi escrito quando eu ainda tinha o
amor da minha vida ao meu lado. A minha dedicatória continua a mesma e mesmo
sendo uma prece que por algum tempo não poderá ser atendida, continuará sendo
meu eterno desejo.
À
minha amada;
Que
os ventos soprem forte minhas velas em direção a seus braços; para cada novo
momento, nos quais, me refaço. Aceito minhas verdades; das mentiras, me
desfaço. Seu sorriso me desarma, sua respiração, tão perto, me acalma. Que cada
gota caída do céu até hoje represente muitos beijos, com os quais ainda me
contemplará. Presentes. Que me contem seus desejos e que eles sejam meu mar...
Prelúdio I -
Rabiscos numa mesa.
Aquela escolha determinaria meu futuro e tive plena consciência disso.
Lembro de ter pensado: “Hoje vou cometer o maior erro da minha vida. E já não
era sem tempo.”
Era julho de 2002 do calendário cristão e o tédio me consumia. Estava no
escritório de contabilidade no qual trabalhava. Tinha uma sala só minha. Um ano
como office-boy e fui promovido para trabalhos internos no setor fiscal. Perdi
o hífen. Ganhei um espetacular aumento salarial. Graças a isso, me estabilizei.
Podia cuidar da minha família. E minha alma morria em silêncio...
Era o segundo escritório de contabilidade no qual trabalhava. Depois do
primeiro, havia prometido nunca mais trabalhar nesse ramo novamente. Quebrei
uma promessa para estar ali e logo completariam três anos.
O telefone não tocava havia quase vinte minutos. Isso era uma dádiva.
Era fim de expediente. Eu rabiscava a mesa com minha lapiseira. O grafite 0.5
gravava, na superfície lisa, um dragão. Mais um.
Os dragões não eram os únicos desenhos rabiscados por mim, naquela mesa.
Havia um peixe. Não um peixe qualquer. Sua cauda era uma mão. Ele era
sustentado por uma planta. Não uma planta qualquer. Ela se transformava numa
serpente da qual pendia uma maçã em formato de coração.
Um peixe-mão. Uma planta-serpente. Uma maçã-coração. Muitos dragões. Para
mim, meus desenhos tinham profundo significado, além de trazer vida para a
mesa. Eles não durariam muito, no entanto, como muitos outros antes deles.
Em minha mente, o peixe tinha cor de fogo. Uma puta ousadia, se você
pensar bem. Ele, porém, não vivia na água. Uma ousadia ainda maior, se você
pensar melhor. E tais ousadias seriam apagadas em breve pela mulher encarregada
da limpeza do escritório.
A faxineira não desistia de apagar meus desenhos, assim como eu não
desistia de refazê-los. Nunca discutimos. Para ela, no entanto, o peixe era
cinza e não cor de fogo; tenho certeza.
Minha mente estava mergulhada na ideia de um dia ser um artista de
verdade e usar minha arte para alcançar quem também está em busca de mais
significado para sua vida; ou em busca de brindar a algum já encontrado.
Existem muitas pessoas enxergando
apenas em cinza e parecem ter satisfação em apagar algumas de nossas partes de
nós. Partes importantes.
É preciso reforçar, de quando em quando, os traços dos desenhos verdadeiramente
relevantes em nossas almas.
Mirando a imagem na mesa, senti
estar tentando falar comigo mesmo. E era algo muito importante.
Uma janela minimizada, no canto inferior do meu computador começou a
piscar. Abandonei a lapiseira. Direcionei a seta, através do mouse, e cliquei
sobre a janela.
– Você tem certeza disso? – A pergunta surgiu na janela expandida, onde
uma conversa acontecia. Vinha de um amigo, do outro lado da cidade, certamente
preocupado com minha decisão.
– Sinto que devo fazer isso – respondi. Como estava escrevendo um livro
sobre um pirata, acrescentei, teclando: – Meu coração é a única bússola que
tenho, nesse grande mar da vida. Aprendi a segui-la e só me resta confiar. Com
sorte, ela me levará aonde devo ir, para aprender o que devo aprender. Até
mesmo se for para aprender a não me arrepender de péssimas escolhas.
– A escolha é sua, meu jovem. Mas, é trocar o certo pelo muito duvidoso.
– A frase apareceu abaixo da minha, na tela do computador, em resposta quase
imediata. Ele sempre me chamava de jovem, mesmo sendo mais novo, em alguns
meses.
– O dinheiro aqui é bem certo, de fato. Paga minhas contas e da minha
família, de fato. Isso é bem certo. Tão certo como minha infelicidade – respondi.
– Estou trocando a terra firme pelas ondas bravias de um mar desconhecido para
mim, bem sei. Mas, ou uso essa bússola; ou desisto dela de vez. E, sejamos
sinceros, já tem muita gente sem coração no mundo. Não concorda?
A
resposta foi uma carinha amarela sorrindo, um smile, apenas.
Meu amigo devia me achar louco. Me respeitava, no entanto. Sua preocupação era
por se importar. Seja como for, ele sabia não poder fazer muito para me fazer
mudar de idéia. E não fez.
Falei com o chefe naquele dia. Em consideração ao camarada, porém,
concordei em ficar até o fim do ano. Ele precisava de tempo para achar um
substituto para mim. O trabalho era horrível, mas o chefe e outros funcionários
eram legais. Fiz amigos ali e os visitaria, na medida do possível.
A angústia não desapareceu, porém. Não desapareceria enquanto eu não
pudesse me dedicar mais a meu livro.
Tentava, arduamente, escrever em meus
momentos livres. Gastava horas, porém, indo para o escritório. Gastava muitas horas
no escritório. Gastava horas para voltar para a casa, graças ao trânsito
infernal, similar ao matutino. Sem mencionar o fato de chegar extremamente
cansado, física e mentalmente. Quase não havia momentos livres.
Naquele dia, fui deitar angustiado. Sentia como se estivesse
negligenciado meu verdadeiro dever. Algo em mim me cobrava aquilo de uma forma
absurda e não sabia explicar a razão. Só sabia da necessidade de escrever.
Mas meu amigo estava certo. Não sabia como seria meu futuro largando uma
carreira promissora por um sonho. A escolha foi feita, no entanto.
Imaginei os desafios vindouros. Uma coisa é imaginá-los; outra, bem
diferente, é vivenciá-los. E os vivenciaria, tinha certeza.
Com um frio na barriga, demorei a dormir e a me entregar a um sonho. O
sonho, porém, não era bem um sonho e nada mais seria como era.
Interlúdio I – Fora do tempo e do espaço
Era tudo cinza ao meu redor. Várias tonalidades oscilantes. Em todas as
direções. Chão e céu. Mas havia brilhos aqui e ali. Pareciam relâmpagos. Acima
e abaixo. Um zunido estranho me desorientava. Mas havia estrondos, surdos e
distantes, aparentemente vindos tanto de baixo como do alto. Pareciam
trovões. Sentia vontade de vomitar.
Havia alguém diante de mim. Era um velho. Vestia roupas claras, embora
encardidas, rasgadas e esvoaçantes, mesmo não havendo vento ali. O sobretudo
parecia ter vida própria. A longa barba era tão clara quanto o cabelo,
igualmente longo. O branco mais intenso, porém, cobria completamente os olhos
do velho.
Ele me era familiar, de uma forma muito indefinida. O lugar não me era
estranho. A sensação me deixou em estado de alerta, um tanto assustado. Não o
suficiente para querer fugir dali.
Sempre fui fascinado por sonhos. Sempre tive certo controle e lucidez durante
alguns. Já havia estudado projeções astrais, em teoria e prática. Algo ali era
diferente, porém, de tudo já vivido por mim, de paranormal.
Depois de algum tempo, me atrevi a perguntar:
– Eu já estive aqui antes, não estive?
– O que é antes? – o velho questionou. Esboçava um sorriso. – A ordem não importa. Não aqui. Você logo
entenderá. É como um quebra-cabeça cósmico.
A resposta não me satisfez. O
velho soube e tentou me ajudar a me situar, perguntando:
– Quais são suas lembranças sobre este lugar?
– Havia um enorme peixe-dourado aqui. Mas não era apenas um peixe –
falei. Parecia uma lembrança, mas não chegava a ser. Escapava da minha mente,
como se eu perseguisse uma raposa por um labirinto, vendo apenas a sua cauda em
cada virada. A raposa, nesse caso, era um peixe-mão e o labirinto era minha
mente.
O quase peixe em minha quase lembrança era similar ao desenho feito por
mim, em minha mesa no escritório de contabilidade. Na quase lembrança, porém,
ele tinha cores vívidas, literalmente. A coisa toda estava viva.
Me esforcei para focar a visão e a lembrança se tornou mais nítida,
assim como uma dor aguda em minha cabeça. Suportei a dor e me lembrei de estar
olhando para o peixe-mão. Ele tinha quase um metro de altura.
– Suas guelras se moviam,
abrindo e fechando, como sua enorme boca, em busca desesperada por algo para se
manter vivo – falei. – Sua
nadadeira estava fincada no espinho da planta-serpente, abaixo dele. Ele se
equilibrava ali.
– Você está descrevendo o selo – o velho
disse. – Lembra o que aconteceu quando se aproximou dele?
Precisei me esforçar muito para encontrar a resposta. Era uma lembrança, mas de alguma forma, eu
sabia tratar de algo que ainda aconteceria; e a simples consciência disso
nublava minha mente. Uma lembrança do futuro? Não fazia sentido.
Ante o novo e doloroso esforço, consegui enxergar como terminou a cena
com o peixe-mão; o tal selo.
Relatei ao velho como ele pediu e, quando contei o desfecho, meu coração
descompassou. A partir de mim, houve uma ondulação no ar. A onda translúcida pareceu
percorrer todo aquele cinza.
– O que foi isso? – perguntei. O coração
voltando ao compasso estabilizado.
– Você se lembrou de ter quebrado o selo e, a
partir disso, o mapa foi ajustado – o velho respondeu. – Não importa se ainda
vai acontecer. Sua mente acionou o mapa por se lembrar de tê-lo acionado,
através do selo. É o suficiente. Já podemos usá-lo. Simples assim.
Me senti mais zonzo ainda. Não tinha nada de simples. Esfreguei as
têmporas para aliviar o desconforto. O quebra-cabeça cósmico teria de esperar
para fazer sentido. Me senti irritado e,
como não buscava mapa algum, perguntei:
– Que lugar é este?
– Que lugar não é este? Seria a pergunta mais apropriada – o velho rebateu. Sua voz era rouca e
profunda. – Está fora do espaço. E do tempo, devo acrescentar.
– Você é Deus? – Não pude evitar a pergunta e fiz uma careta, já
arrependido de minha ingenuidade, antes mesmo de ver o esboço de um novo
sorriso esticar os lábios dele.
– Você sabe quem eu sou –
ele respondeu. – Só não sabe que sabe. Ainda. Mas, com um tantinho de esforço,
vai lembrar.
– Holdur. – respondi, sem
saber como sabia. Ele sorriu. E continuei: – Mas não é seu real nome. É um
apelido, tirado da mitologia nórdica.
– Qual nome é real? – ele
provocou, bufando um riso. – Esse me serve. Por ele sou, fui e serei conhecido
por muitos; incluindo você.
– De onde lhe conheço? – perguntei, tentando ser mais específico.
– De quando? Seria a pergunta mais apropriada.
– Isso é um sonho – afirmei, mirando o nada. – Estava acordado há
pouco; tenho quase certeza.
– Ou está invertendo as coisas.
O velho pareceu esperar minha compreensão sobre tudo aquilo. Ao entender
ser cedo demais para eu entender, Holdur deu alguns passos, aparentemente a
esmo. Parou e esticou o braço direito na minha direção; a palma virada para
baixo durante um momento.
Ao virar a palma da mão para cima, ergueu o braço e vi uma esfera emergir do chão, feito uma
imensa gota de água se formando ao contrário. A esfera respondia aos movimentos
do velho e se destacou do todo abaixo de nós.
Holdur moveu os dois braços, fazendo um
círculo no ar, enquanto a esfera flutuava ao nosso redor. Ele parou de se mover
por um instante. Os braços abertos. A esfera estacionou diante dele, entre nós,
na altura de seu peito.
Fiquei em silêncio. Ele não:
– Este lugar guarda todos os mapas para todos os tesouros, de todas as
almas. E esse será seu ponto de partida nesta caçada.
Vi, dentro da esfera, uma cópia miniatura de
uma parte específica do céu existente abaixo de nós. A pequena parte brilhava
dentro da esfera numa sequência exata, em sincronia com a sua versão ampliada,
ainda imersa no todo sob nossos pés.
O chão parecia uma fina camada de gelo, embora
não frio, a nos separar do céu abaixo. As nuvens, na parte inferior, acendiam e
apagavam numa sequência nada aleatória. Prestando bastante atenção, era
possível sentir, mais do que ver, as linhas finas nas quais os brilhos
aconteciam. Cada linha numa tonalidade de infinitas cores. O cinza não era tão
cinza, em verdade. As oscilações frequentes, nas cores do prisma, davam aquela
ilusão. As linhas corriam em várias direções e, em alguns locais, as explosões
surdas aconteciam.
Aquele lugar era um imenso mapa e tinha
realmente reagido à minha lembrança de quebrar o selo vivo. Fiquei muito assustado e sem saber a razão.
Num sussurro rouco, o velho falou:
– Vou lhe contar uma história. Se prestar atenção, tudo fará sentido.
Será tão revelador quanto divertido.
Holdur não esperou qualquer reação minha e moveu os braços com
velocidade e vigor, levando as palmas das mãos em direção à esfera translúcida
diante dele.
O choque gerou uma explosão. Tudo
ao redor desapareceu num branco dolorosamente intenso. Não adiantava fechar os
olhos. Eu não tinha mais olhos ou forma, aliás. Estava lá, mas não estava.
Apenas presenciava.
A voz rouca de Holdur falava direto à minha mente. As palavras eram sobre um homem ajoelhado, prestes
a morrer.
A cada palavra dita pelo velho,
um cenário era construído naquele branco intenso da explosão; como tinta viva
jogada numa tela etérea tridimensional.
As imagens estavam um pouco borradas, mas era possível ver tochas
iluminando o lugar. A inquietação das chamas faziam a sombra do homem no centro
da cena dançar na madeira sob seus joelhos. Havia outros ao seu redor, logo
percebi.
A voz do velho continuou esparramando sons, também borrados, como as
cores fortes das imagens.
Minha mente tentou, em vão, entender como tudo aquilo estava relacionado
a mim e o que era tudo aquilo. Só entenderia se prestasse atenção, entendi. Tentei
dissolver o medo de me desfazer. Esperei a tal história fazer sentido no final,
sem fazer ideia do quanto iria muito além dessa expectativa.
Calei as perguntas de minha mente e os borrões se transformaram num
mundo extremamente nítido, em imagens, sensações e sons; como jamais percebidos
antes.
Era uma taverna e a voz de Holdur mantinha a cena viva.
Capítulo I – O mestre das apostas
O dia ainda não havia
nascido na Taverna do Coelho Caolho, imersa em sombras, silêncio e expectativa.
As poucas tochas, ainda acesas, tremeluziam em seus últimos momentos de fogo e
iluminavam a face de um homem ajoelhado, tremendo em seus últimos momentos de
vida.
Era o primeiro mês do
ano 524 do Novo Tempo. Seria o ano 2536 do antigo calendário cristão, se tal
calendário não tivesse sido abandonado e esquecido, juntamente com a história passada
da humanidade e toda tecnologia moderna. Nessa civilização neomedieval, havia
muitas tavernas, frequentadas por muitos piratas. A taverna do Coelho-Caolho,
no entanto, merecia atenção especial.
Um homem, amarrado e
de joelhos no chão, tinha uma espada encostada em sua garganta. Quem o ameaçava
era o velho mestre das apostas, com sérios problemas mentais e linguísticos.
O homem ajoelhado
ofegava sob os olhos arregalados do velho. Ao redor dos dois homens no centro, havia
alguns bêbados debruçados sobre mesas manchadas de vinho. Havia um taverneiro
atrás do balcão. A atendente estava em pé, entre duas mesas, tão inerte quanto
a rosa branca, pousada sobre um barril, não muito distante dela.
Como a rosa, ninguém
fazia menção de tentar salvar tal homem ameaçado.
A lâmina fria do
mestre das apostas ergueu a face do coitado que, de qualquer forma, miraria o
alto em busca de um santo qualquer. Num último ato de desespero, o ameaçado
rompeu o silêncio com uma prece. Não acreditava em nenhum deus. Naquela
situação, no entanto, passaria a acreditar em qualquer um que atendesse sua
prece, feita às pressas.
Bastaram poucas
palavras santas e um brilho iluminou o rosto do desesperado, emoldurado pelo
cabelo ainda mais claro, em virtude da luz. Era o dia nascendo. Os primeiros
raios do Sol invadiam a taverna através das frestas na madeira e refletiam da
lâmina fria do mestre das apostas para a face do coitado. Mas, o simples nascer
do dia não impediria o morrer do homem.
Ciente de sua
situação, o desesperado retomou sua reza:
–
Ave Maria que estais no céu, livrai-me do mal e dos pecadores, assim na terra
como no bendito é o fruto do amém em vosso ventre!
Estava enfiado em
trapos. As botas não tinham pontas e seus dedos sujos estavam à mostra, tocando
o piso de madeira. Sua barba era tão mal feita quanto sua oração, contornando o
rosto e se misturando ao cabelo emaranhado, em tom de castanho claro. A falta
de bigode dava a ele um ar juvenil. Os olhos tinham inocência de quem nunca tivera
grande comprometimento com alguma coisa, a ponto de ser privado da liberdade de
andarilho festeiro.
O velho mestre das
apostas não demonstrava piedade. Esbaforido, argumentou:
– Vô ti
matá, seu cabra sem vergonha! Vendeu amuleto da sorte pra todo mundo
dessas terra e todo mundo ganhô as aposta de mim!
O longo bigode
trançado do velho balançava freneticamente quando ele falava, tão branco como o
cabelo fino, escorrendo por suas costas encurvadas. Era calvo no topo da cabeça.
Seus braços, expostos graças à camiseta curta, eram quase tão desprovidos de
carne quanto o punho de sua espada de lâmina afiada. No bolso da camiseta, ele
tinha um baralho e metade da primeira carta estava à mostra. Era um ás de
copas. E ele não tinha outro coração. Numa tanga, amarrada acima da calça e
abaixo da pança proeminente e discrepante no corpo magrelo, havia o naipe de
paus bordado. Era um aviso sobre como o sexo era, para ele, um mero jogo de
interesses; embora estivesse há décadas fora dessas partidas. Nos calçados,
havia naipes de espadas, bem costurados, para sempre se lembrar de levar uma
arma aonde quer que fosse. Enfiada numa faixa amarrada na cabeça, havia uma
carta, também escolhida de forma proposital. Era um sete de ouros. Se o
arco-íris tinha sete cores, e levava a um pote de ouro, aquela carta era a
melhor escolha, havia lhe ensinado seu finado pai. Os conselhos do pai seguiam
todos nessa linha. Chegou a dizer, certa vez:
– Quando alguém lhe perguntar o que você tem
na cabeça, filho, aponte o ouro. Só isso importa. Aposte a vida de um parente,
se precisar.
Ironicamente, o
jovem, ainda aspirante a mestre das apostas, fez exatamente isso. E os
conselhos de seu pai sobre os naipes terminaram ali, assim como sua vida.
Antes de atingir o
auge de suas vitórias, o mestre das apostas havia sofrido derrotas. Agora
voltaram a superar as vitórias, numa frequência perigosa. Não querendo admitir
sua falta de bom senso, cada vez mais escasso, resolveu culpar o vendedor de
amuletos da sorte.
–
Tô pobre, fudido e quase falido por sua culpa, seu fêdaputa! Só me restô cem moeda,
seu peste sem mãe! – o velho
esbravejou, indignado com a pobreza iminente.
A moeda do rei Valdrick, chamada de valois,
já havia se tornado a única em todos os reinos, a partir do tratado assinado no
ano anterior. E quando alguém dizia ter uma moeda, estava se referindo a uma
moeda de bronze, equivalente a um valois. O mestre, em verdade, não tinha cem
moedas em sua bolsinha de couro. Tinha dez moedas de prata, equivalentes a cem
valois. Enquanto uma moeda de prata valia dez valois, uma de ouro valia cem.
O mestre poderia ter uma moeda de ouro, ao invés de dez de prata, mas,
assim como possuir apenas moedas de bronze fazia o velho se sentir mais perto
da pobreza, possuir apenas uma moeda produziria a mesma sensação, mesmo sendo
uma de ouro. Precisava ouvir o tilintar dos metais dentro duma bolsinha de
couro pra se sentir no jogo da vida. Cada vez mais, porém, tinha menos e,
enfurecido, continuou a ameaçar o coitado:
– Cê
vai morrê é agora! E num dianta tentá fugi, caus de quê, tenho lá fora mais de
dez capanga qui pega pra capá. Seje homi, disgramado! Num chora não! Vai
aprendê a não mexê com o mestre das aposta!
– Você disse, mestre das apostas? – perguntou
uma voz arrastada.
Por um instante, a voz pareceu vir do além. Não pertencia a nenhum dos
homens bêbados, sentados às mesas ou escorados nas paredes ao redor. Não
pertencia, ainda, ao taverneiro, à atendente, ao mestre das apostas e nem
mesmo à rosa; assim como não pertencia ao homem ameaçado, ainda rezando
ajoelhado. Era uma voz levemente arrastada, somente ouvida graças ao silêncio
feito pelos presentes, atentos e à espera da execução. Dificilmente alguém
ali teria descoberto de onde haviam vindo as palavras. Um movimento atrás dos
barris de vinho vazios, porém, provou não se tratar de uma voz do além e
denunciou sua origem. Nem mesmo a atendente, atenta a tudo, se lembrava do
pirata caído ali atrás.
O mestre magrelo das apostas avaliou, de cima a baixo, o pirata. Bastante
desconfiado, quis saber:
– Sô eu mesmo. Quem perguntô?
O pirata se levantava lentamente, enquanto bebia um último gole de rum
duma garrafa; como se a embriaguez, notória, não fosse suficiente.
Aos olhos do mestre, o pirata não pareceu ameaçador. Usava uma bandana
preta. O cabelo solto era ornado com pequenos crânios de prata e emoldurava a
cara suja. O cavanhaque tornava as caretas do pirata mais evidentes, quando um
músculo ou outro era esticado. Trajava um sobretudo e um chapéu de três
pontas. A pedra negra pendurada no
pescoço dele balançou e o pirata gentilmente a estabilizou, embora ninguém
tenha reparado nesse gesto. A única coisa a quase chamar a atenção do mestre
das apostas foi a fivela de prata do cinto do tal pirata: um crânio alado. Onde
ele teria ouvido falar disso antes? Teria? Mas, a mente do mestre já dava
sinais de falhar desde o seu nascimento e, recentemente, já quase não se lembrava
de fatos recentes, ainda menos de fatos ocorridos um ano atrás.
O esfarrapado homem ajoelhado, porém, abriu um sorriso largo e exclamou:
– Ônix Pedra-Negra!
O pirata ergueu mão, como se acusasse ser ele mesmo. Imediatamente,
porém, voltou a procurar sua garrafa favorita de rum, largando a vazia de lado.
Não dava muita atenção aos dois homens no centro da taverna; e a mais ninguém
ali, para ser sincero.
O velho mestre não relacionou o nome a algum feito e como não era dotado
de paciência, perguntou:
– O que cê qué cumigo, Pirata Praga-Negra? –Esbugalhou momentaneamente os olhos, como se
precisasse fazer isso para sua visão alcançar o outro lado da taverna. Mas, por
fim, decidiu não se preocupar com o pirata e avisou: – Tô ocupado. – E
voltou a mirar o homem ajoelhado.
– Quero alertá-lo – disse Ônix Pedra-Negra, mesmo assim. Soergueu as sobrancelhas ao avaliar, aliviado,
a garrafa recém encontrada. Sorrindo, completou: – Não vou lhe culpar, porém,
se preferir terminar os assuntos em andamento.
O homem ajoelhado demonstrou decepção. O mestre das apostas deixou
escapar uma risadinha de prazer, ao erguer sua espada. A lâmina brilhou, pronta
para descer na nuca, que nunca antes havia suado tanto como naquele instante.
– Mas há quem diga não merecer o título de mestre das apostas. –
Ônix deixou escapar, antes de abrir a nova garrafa de rum.
O mestre das apostas espichou o pescoço, colocando a cabeça entre os braços
erguidos, para enxergar o pirata que, ao conseguir a atenção do abestalhado
homem armado, acabou deixando o gole de rum da nova garrafa para depois, e
continuou dizendo:
– Dizem não merecer tal título, pois, cada vez
mais, anda apostando menos. Sou até capaz de apostar quarenta moedas que
você não aposta sessenta moedas em meu jogo favorito.
Incrédulo, o mestre
perguntou:
–
Cê apostô que eu num vô apostá? – Baixava lentamente a espada. A mente tentando processar, de
forma ainda mais lenta, as palavras do pirata. E Ônix continuou:
–
Exato. Então? Devo-lhe quarenta moedas ou você me deve?
A conclusão da mente
perturbada do mestre das apostas, foi: “Se eu num apostá, eu perdo quarenta
moeda! Mas preu ganhá, basta eu apostá. Pirata idiota!”
Sorrindo, o velho avisou:
– Cê perdeu,
Prega-Negra! Vô apostá. Agora mi
dá minhas quarenta!
–
Lhe darei as quarenta moedas, mas, espere – disse
o pirata, com um breve sorriso no canto esquerdo da boca, quase tão
imperceptível como suas duas espadas, penduradas na cintura, não completamente
cobertas por seu sobretudo. – Afinal,
se me vencer em meu jogo, receberá, de uma só vez, cem moedas. As quarenta,
da primeira aposta já vencida por ti, e mais sessenta, da segunda aposta,
caso venha a vencer.
Os olhos do mestre
brilharam. Ônix Pedra-Negra notou e continuou:
–
Somando com as cem moedas que disse ter, ficará, então, com duzentas. Enquanto,
se eu vencer, recebo apenas vinte moedas, pois lhe devo quarenta das sessenta
que nem sei se vou ganhar.
O mestre estava
confuso. Da forma como o pirata colocava, porém, lhe pareceu uma boa notícia.
Ônix realmente parecia arrependido ao dizer:
– Só agora percebo minha falta de esperteza. Mas somos homens de
palavra e, por isso, vou até o fim.
O mestre das apostas,
àquela altura, nem tinha mais pressa em matar o homem ajoelhado e aliviado;
assim como ninguém mais ali tinha pressa em assistir a morte do coitado.
O velho apostador podia não se lembrar, mas
todos os outros ali conheciam a fama de Ônix Pedra-Negra. Era o suficiente para
esperarem por uma diversão ainda maior. Mortes, eles viam todos os dias. O pirata
em ação, não.
Naquele dia, o mestre
das apostas acordou disposto a mudar sua sorte, acabando com aquele a quem
julgava ser a causa de sua maré de azar. E tudo indicava o fim desta. Isso,
no entanto, não resultaria no perdão para o homem/causa de sua má fase. O
velho apenas se sentiria menos desesperado com boas moedas no bolso e, assim,
poderia se ater a pequenos detalhes da morte do coitado e se divertir por
algumas horas, ao se lembrar deles. Sua memória era claudicante e não duraria
muito, de qualquer forma.
Uma súbita pontada de
dúvida, porém, atravessou a mente lenta do mestre. Somente naquele momento
notara algo deveras importante: ter aceitado apostar num jogo até então
não revelado. A dúvida levou o sorriso e trouxe uma inquietação desconcertante.
E, ressabiado, o velho perguntou:
–
Má qualé seu jogo mais favorito, pirata?
Um breve sorriso despontou
novamente no canto esquerdo da boca de Ônix. Ele sentia a expectativa refletida
em todos os olhares ao seu redor. Sabia o quanto era admirado pelos bêbados ali.
Isso, no entanto, não o deixava nervoso; pelo contrário. Ele tinha um nome pelo
qual zelar e não decepcionaria seus admiradores. Até aquele dia, brindavam
ao maior feito do pirata Pedra-Negra...
Capítulo II – O
príncipe
Era uma noite de
cerimônias e o rei Ulysses de Valdrick tinha muitos visitantes importantes em
seu castelo. Muitos espetáculos seriam apresentados, em comemoração ao tratado
assinado. O mais esperado deles era o enforcamento de um pirata, devidamente
aprisionado numa das celas. Tal morte estava marcada para a manhã seguinte.
O ano era 523 do Novo
Tempo. Um ano antes do encontro de Ônix com o mestre das apostas.
O Rei Valdrick estava
sentado em seu trono, no salão real, lotado de nobres. Ele tinha cabelo longo e
grisalho. A barba, bem aparada, também era cinza, em concordância com a prata da
armadura e coroa; escolhidas para a ocasião. A única cor estava em sua capa, de
um azul escuro.
No trono, à esquerda
do rei, estava a rainha. Trajava um
vestido verde escuro, adornado com prata e pérolas. A coroa, como a do rei, era
composta por finas linhas do claro metal, entrelaçadas para exibir desenhos
exuberantes acima da linha da cabeça. O cabelo dela era castanho, evidenciando
a grande diferença de idade em relação ao marido. Os braços desnudos da rainha
eram ornados com braceletes, inspirados nas coroas.
Ao lado de cada soberano
havia um soldado. Vestiam armaduras reluzentes e capas pretas. As indumentárias
dos soldados da Elite Especial. Os elmos eram bem fechados, havendo aberturas
apenas na linha dos olhos, através das quais os sentinelas espiavam o
mundo.
O terceiro trono, à
direita do rei, estava vazio. Era destinado ao príncipe Aleck de Valdrick.
O músico principal,
num patamar abaixo dos tronos, tocava uma última música introdutória, depois da
qual o rei não poderia mais protelar seu pronunciamento inicial e, consequentemente,
a abertura da celebração.
Os nobres convidados, dois patamares abaixo
dos tronos, bebericavam em suas taças refinadas. O príncipe Aleck ocuparia seu
lugar? O rei se perguntou, olhando para o trono vazio. Seu olhar pousou ali e
perdeu-se. A recordação do encontro com o filho, no fim da tarde, veio numa
fração de segundo.
A conversa se tornou
uma discussão quando o filho afirmou:
– Não estarei
presente na celebração desta noite, meu pai.
– Por quê? Me diga,
Aleck, por que insiste em ignorar seu real papel? – perguntou o rei. Estavam na
torre mais alta do castelo.
– E qual é meu
papel? – o príncipe encarou o pai.
– Ser um rei. Para
início de conversa – respondeu o mais velho, com o pesar dos anos vividos a
temperar suas palavras. O longo cabelo grisalho estava solto, e balançava ao
vento. O rei afastou a pesada capa, passou a mão pela curta barba acinzentada e
continuou: – Meu tempo está no fim. Ele se põe no oeste da minha
existência. O seu está por vir. O povo espera por ti.
– E por que teme a
noite, meu pai? – perguntou o jovem príncipe, entristecido. Não tinha pêlos no
rosto de pele clara. O cabelo negro estava
muito bem preso numa trança longa, descendo pelas costas. Tinha o olhar da mãe.
Trajava uma simples bata branca e calças escuras. Presa ao cinto estava sua
estimada espada leve. – Por que cada um não pode lançar mão de uma tocha e
iluminar o próprio caminho?
– Eles não estão
prontos para isso, meu filho – afirmou o velho. A certeza pareceu amarga na
própria língua. Mas acreditava nela.
– Estão mais prontos
do que eu para ser um rei! – retrucou Aleck de Valdrick. A convicção soberana do
filho teria feito o velho pai rir, se o rei não houvesse abdicado de tal habilidade
há tempos. Deixou o filho continuar o desabafo: – E se não estou pronto
para governar um reino, quem dirá ser a luz de toda a humanidade!
O semblante de
Ulysses endureceu e ele perguntou:
– Quer negar seu
destino?
– Não posso ser a
reencarnação de Dáverus – Aleck não conseguia aceitar a responsabilidade de ser
um deus, adorado por milhares de pessoas.
O velho Valdrick,
mais uma vez, afirmou:
– A profecia é exata.
Todos conheciam a
profecia. Até quem não acreditava nela, como Aleck.
“Dáverus renascerá após trezentos anos de repouso. Filho
de Ulysses de Valdrick, o maior de todos os reis daqueles dias. Em seu
aniversário de vigésimo sétimo ano, vejo o anel de cristal em seu dedo. Suas
palavras eu ouço. Sua vida será repleta de dores e alegrias. Em sua alma, muito
peso. Terá poder para salvar a humanidade de um fim pavoroso. Quando o povo
estiver prestes a desistir de acreditar, ficará, então, surpreso. Dáverus regressará...”
Aleck forçou um riso
nervoso e falou:
– Tal profecia foi
repetida através dos séculos. Seu nome, meu pai, foi escolhido por meu avô. Não
sabemos se ele acreditava no seu destino em se tornar o maior rei dessa
geração, ou se ele quis fazer isso acontecer.
– Está questionando
os méritos de minhas conquistas? – O olhar do rei era duro.
O filho notou a
ofensa e tentou amenizar, sem voltar atrás:
– Honestamente? A
profecia de Dáverus não valida seu nome. Ela já existia antes mesmo de o senhor
nascer.
Aleck mirou a
paisagem. O pai lhe deu tempo para pensar. Ulysses era um incrível
estrategista. Nasceu pobre. Chegar até ali nada tinha a ver com a profecia. Por
muitos anos, inclusive, ocultou seu nome com o apelido de guerra. Quando mero
soldado, era conhecido como o Lobo. Ulysses tinha um temperamento forte e
cresceu colecionando inimigos, até torná-los submissos através de incríveis
feitos. Não queria chamar atenção para si mesmo, antes do momento certo. Mas
nunca duvidou ser o rei da profecia; a ser responsável pela reencarnação de um
deus.
O jovem príncipe se
perguntou como seria se acreditasse ser Dáverus renascido com tanta certeza
quanto a de seu pai sobre o assunto. Não conseguia acreditar, porém.
O silêncio não
resolveria nada e Aleck voltou a encarar o pai. O rei, no entanto, falou antes:
– Faltam ainda cinco
anos, segundo a profecia, para seus poderes divinos despertarem. Até lá, é
justo não se ver como um deus. Você é meu único filho, porém. Não terei outro;
isso está claro para mim. E, depois de hoje, me tornarei o maior rei dessa
geração.
Ulysses de Valdrick
estava certo em afirmar não poder ter outro filho. Uma doença o havia tornado
infértil. E, graças ao tratado proposto para aquela noite, seu poder sobre
todos os povos seria insuperável.
Exasperado, Aleck
questionou:
– E se eu for Dáverus
reencarnado e não quiser assumir a responsabilidade de salvar a humanidade do
sei-lá-o-quê de terrível que está por vir?
– E o que gostaria de
fazer de sua vida? – perguntou o velho Ulysses, deixando a experiência falar
mais alto. Às vezes, para ganhar muito terreno, é preciso ceder um pouco.
O príncipe suspirou e
foi sincero ao dizer, mordendo a isca:
– Encontrar um
verdadeiro amor e viver de forma simples. Um dia de cada vez. Como se cada um
deles fosse o último e também o primeiro. Intensamente simples. Minha espada e
minha vontade construiriam meu caminho de acordo com meus verdadeiros méritos.
Viver uma imensa aventura. Quero conhecer o mundo e as pessoas; dos mais
variados pontos de vista. Quando encontrar meu fim, quero olhar para trás e me
orgulhar. Não quero ser um deus. Quero poder morrer facilmente, para valorizar
cada novo dia de vida. Só lamenta a morte quem não viveu de verdade. Quero
morrer com brilho nos olhos e um sorriso nos lábios... e não com o olhar pesado
e lábios inexpressivos, depois de tantos anos de sacrifícios.
– Sim,
fiz meus sacrifícios, meu filho – respondeu o velho. O olhar pesado acima de
lábios inexpressivos. – Você não pode imaginar quantos. Assim como não faz
idéia da realidade do mundo. Acredita ser um espadachim bom o suficiente para garantir
sua vida?
– Ninguém, neste
castelo ou fora dele, me derrota faz anos – o jovem príncipe disse. E era
verdade.
– Evidentemente. Todos
sabem quem você é. Ninguém arriscaria lhe ferir – o velho rei foi cruel,
sem perceber. Há muitas formas de ferir alguém. E o orgulho de Aleck o foi,
quando o pai falou: – Não sobreviveria numa luta de verdade, tenho certeza.
Quanto ao amor, já está compromissado com a filha de Raguir, uma
princesa encantadora, acredite. Precisa aceitar seu destino.
Mais uma discussão
foi trazida pelo pai e o filho perguntou, admirado:
– Sequer a conheço.
Como espera minha aceitação?
Ulysses não
respondeu. Limitou-se a dizer:
– Sua imaturidade,
aos vinte e dois anos, me assusta, Aleck.
– Para você, meu pai,
sempre serei imaturo.
– Quer me provar o
contrário? Quer conquistar meu respeito? Compareça à nossa
celebração hoje e não precisará se casar com a filha de Raguir. Tem minha
palavra. Esse tratado é o mais importante de minha vida e é o
alicerce da sua. Se comprometa a mantê-lo, supervisionando-o pessoalmente, e me
darei por satisfeito.
Dito isso, o rei
Ulysses saiu, deixando o jovem príncipe Aleck com seus pensamentos.
Era típico do velho pai. Se Aleck não
comparecesse, estaria dando provas de imaturidade e, para completar, não
estaria livre do casamento com a filha de Raguir. Por outro lado, se
comparecesse, não estaria livre de governar aquele reino. Aquele tratado o
daria poder suficiente para tomar decisões e definir o destino de toda a
humanidade. Ficou enjoado só de imaginar.
Pela primeira vez, o
príncipe considerou a profecia como verdade. Uma verdade metafórica, ao menos.
Talvez o poder mencionado na profecia não fosse o poder de rasgar o céu, erguer
montanhas, voar ou viver eternamente. Acabou descartando a ideia, no entanto.
Aleck de Valdrick
desejava simplesmente ser livre, e as opções do pai não lhe pareciam opções.
Ulysses de Valdrick jamais entenderia. Nunca se casou por amor, nenhuma das
duas vezes. A mãe de Aleck, falecida anos atrás, era uma ótima companheira para
o rei, tanto quanto a atual. As duas haviam ajudado o rei a fortalecer
alianças.
A noite caiu
juntamente com lágrimas, e uma frase do pai ecoou na mente do jovem filho: “Esse tratado é o mais importante de minha
vida.”; e Aleck concluiu: “Mais
importante do que a felicidade de seu filho.”
O rei Ulysses de
Valdrick estava certo em sua afirmação de Aleck não poder imaginar os
sacrifícios feitos pelo pai. O velho rei, por outro lado, não podia imaginar um
sacrifício maior, prestes a ocorrer em sua vida.
O rei respirou fundo,
ao final da bela música executada um patamar abaixo. Em algum momento teria de
justificar a ausência do príncipe. Com a desculpa certa, porém, não chegaria a
ser um problema. Mas não precisava falar disso de imediato e pronunciou:
– Bem-vindos a essa
celebração, nobres amigos. Fico feliz em recebê-los para comemorar o marco
inicial de uma nova era para nosso reino. As novas leis já varrem a
criminalidade como uma sujeira que nunca deveria ter sido tolerada. E a partir
de hoje, com o tratado aqui assinado, todos vocês desfrutarão da segurança de
um rei. Portanto, desfrutem também de minha diversão.
Os músicos iniciaram
a música ensaiada. O rei sorriu para sua esposa e ela inclinou a cabeça. Era
uma exuberante mulher, vinte anos mais nova. Ostentava um penteado extremamente
trabalhado em meio à cora. O vestido salientava a beleza de seu corpo. O rei
sabia o quanto era invejado por ter aquela mulher e isso lhe dava certo prazer.
A rainha não esperava nada além de seu rei. Era, literalmente, uma relação de
aparências.
A primeira
apresentação do espetáculo escolhido para a ocasião era o bobo da corte. O
artista era tido como o mais hábil malabarista de todos os reinos. Sua roupa
era escura, mas havia tiras de panos coloridos e brilhantes pendurados nas extremidades
do chapéu de muitas pontas, assim como ao redor dos seus joelhos, cotovelos e
cintura. O rosto estava completamente coberto por uma máscara branca,
sorridente.
Os nobres foram
tomados por orgulho e fascínio. Os espetáculos de Valdrick exaltavam a
exuberância destinada somente aos privilegiados da mais alta corte. A mente do
rei, no entanto, estava absorta em pensamentos sobre o filho, alheia ao artista
em cena.
Dois bastões eram
girados com maestria pelo artista, de forma deslumbrante. Ulysses de Valdrick sequer
notava. Aleck não foi mais visto desde a conversa ao fim da tarde. A alma do
rei estava inquieta. A ausência do filho era uma forma de aceitação do casamento?
O rei questionou-se. Seria melhor assim, pensou. Aquela celebração e o tratado eram
importantes. O casamento acertado, no entanto, era muito mais; embora deixasse
o filho pensar o contrário, para persuadi-lo a escolher a união com a princesa.
Os convidados, ao
contrário do rei, sequer piscavam, entretidos com o bobo da corte. O artista
havia desenrolado fitas, presas nas pontas dos bastões. Círculos e mais círculos
eram desenhados no ar, pelas fitas, em cores tão vivas quanto seus movimentos. Os
riscos coloridos passavam ante a face branca da máscara do artista.
O rei ainda estava
absorto em seus devaneios, quando o artista, já sem seus bastões,
aproximou-se da rainha e lhe ofertou uma rosa. A primeira apresentação estava
no fim.
A rainha sorriu e
aceitou o presente. O rei aprumou-se para aplaudir, enquanto o artista voltava
para centro do patamar inferior ao dos soberanos e superior ao dos convidados.
O bobo da corte pegou seus bastões e executou o último movimento, terminando em
sincronia com a música.
A rainha inalou o
perfume da rosa.
– Não! – gritou o
terceiro soldado da Elite Especial, ao entrar no salão. Tarde demais. A rainha
tombou.
O
rei amparou sua esposa rapidamente e olhou, suplicante, para o soldado recém-chegado.
Esperava uma explicação e ele não tardou em cedê-la, dizendo:
– Acabo de encontrar
o artista desacordado na adega. Esse aí é um impostor. – Apontou
para o homem de máscara, estático em sua posição final da apresentação. O rei
entendeu o óbvio: havia alguma poção na rosa. Enfurecido, gritou:
– Vocês deixaram um
assassino entrar aqui?!
– Ele pode ter
entrado, meu rei, mas não vai sair – o soldado colocou o elmo e sacou a espada,
se igualando aos outros dois. Os três cercavam o intruso de rosto completamente
coberto pela máscara branca e sorridente.
– Está tão
errado quanto seu rei – disse a voz por baixo da máscara. O sorriso congelado
no falso rosto era perturbador. O homem levantou-se lentamente e continuou: –
Sim, vou sair daqui, e, não, não sou assassino. A rainha apenas
dormirá por algumas horas e despertará com uma bela dor de cabeça.
Quando seu rei procurá-la à noite, para assuntos conjugais, ao menos dessa
vez ela não precisará mentir, para se livrar do fardo de agradar a um
velhote...
– Como ousa?! – o rei
gritou. Os soldados se posicionaram para atacar.
– Como ouso vir aqui mostrar
que não está a salvo em seu próprio trono? – a voz debaixo da máscara
indagou. – Como ouso vir aqui lhe dar uma dose do mesmo terror imposto ao povo?
Como ouso desmascará-lo?
O rei estufou o peito
e proclamou:
– Tornou-se apenas
mais um voluntário aos castigos listados em minhas leis para criminosos como
você! O pirata, encarcerado em meu calabouço, não será enforcado sozinho
amanhã! Sua ousadia será punida com a morte. Essa é a minha palavra e meu nome
depende dela. Não haverá clemência!
Os soldados esperavam
o comando do rei. O invasor, no entanto, foi mais rápido em responder, com
entonação séria atrás do sorriso estático da máscara:
– Lamento
desapontá-lo, ó rei, mas estou aqui apenas para esclarecer a seus nobres
convidados o que suas mentes obtusas não são capazes de entenderem sozinhas.
Estou aqui para dizer a eles como suas leis impedem o povo de ter uma vida
digna, o impelindo a roubar ou trapacear. Você cria os ladrões para poder
oferecer proteção aos nobres. Uma negociação fácil, dada a fragilidade dos
criminosos cultivados por ti. Estou aqui para deixar bem claro aos nobres
presentes: todos nós usamos máscaras. O soberano rei Ulysses de Valdrick não é uma
exceção. O que ele dá com uma mão, tira com a outra.
– Prendam-no! – o rei
deu a ordem tão esperada pelos homens em armaduras reluzentes. – Quero a morte
dele em praça pública pela manhã!
– Ah! Sim! A Elite
Especial! – Os olhos no fundo da máscara miravam os olhos nos fundos dos
elmos. – Os três melhores soldados do rei, versados nas artes antigas de
combate. É uma honra merecer tanta atenção. Em respeito ao respeito que
tenho por vocês, concedo-lhes um presente: a vida.
Os soldados
continuaram a aproximação, ainda mais obstinados ao combate, após evidente
provocação. O mascarado continuou, no entanto, como quem estava em plena
vantagem:
– A vida de cada um
de vocês vale tão pouco assim, para recusarem? Sejam sensatos. Se eu perder,
é seu rei quem vence. Mas, se eu vencer; são vocês quem perdem.
Os soldados sequer
cogitaram a possibilidade de não lutar.
– A escolha é de
vocês – o invasor insistiu. – Não transfiram a responsabilidade de seus atos
para o seu rei. Não é ele quem está empunhando uma espada agora.
Eu escolho a vida. Minha escolha só irá contra a de vocês se
escolherem a morte.
As mãos dos soldados
seguravam com firmeza suas espadas. No fundo dos elmos, via-se olhares de
determinação. As capas foram desprendidas das ombreiras de metal. O mascarado
entendeu a resposta e segurou com firmeza os dois bastões da apresentação,
agradecido por serem de metal. Como imaginou desde o início, sua provocação foi
o suficiente para lutarem com todas as suas forças; como o mascarado desejava.
Era o momento de provar suas perícias de combate.
Dois dos oponentes
atacaram alternadamente. O homem de máscara defendeu-se. E, por um bom tempo, só
conseguiu fazer isso. Quando o terceiro soldado entrou na batalha, o misterioso
guerreiro encontrou dificuldade em se defender e muito mais em atacar.
Conseguiu evitar ataques letais. Muitos golpes, porém, o atingiram e ele
terminou desarmado. Ainda assim, conseguiu derrubar um de seus adversários.
Os dois soldados de pé atacaram em
sincronismo e o mascarado usou uma manobra arriscada, pegando o punho de uma
das espadas, descendo em sua direção, para bloquear o ataque do outro soldado.
Para tal, girou o corpo, ficando de frente para o soldado a ser bloqueado e de
costas para o outro soldado.
O invasor teve êxito
na façanha e atingiu, com a parte de trás da cabeça, o rosto do soldado às suas
costas. A espada foi largada pelo homem ferido e ficou na mão do mascarado. O
nariz esmagado atrás do elmo sangrou. O sangue escorreu pelo queixo do elmo. Aquele
soldado não conseguiria enxergar nada por um bom tempo, em virtude das
inevitáveis lágrimas.
O mascarado tinha bloqueado o ataque do outro
e contra-atacado com sucesso. Foi além, no entanto. No processo, conseguiu roubar
a segunda espada, ao desferir um corte certeiro no segundo soldado, com a
lâmina da primeira espada roubada por ele. O ponto vulnerável do corpo, não
coberto completamente pela armadura, sangrou.
Os dois soldados,
bastante feridos, não teriam impedido a fuga do mascarado. O terceiro oponente,
no entanto, colocou-se de pé entre ele e a saída.
O homem de armadura
atacou primeiro, mas foram precisos muitos movimentos até o mascarado
perder uma das espadas e o equilíbrio, parando de costas para o oponente. O
invasor estava vulnerável e seu adversário não hesitou em atacar. O golpe mirava
o alto da cabeça do mascarado, mas não chegou a atingi-la.
O invasor se defendeu
com a espada erguida em tempo, sem olhar para trás. Segurou o pulso do oponente
e girou desferindo um golpe entre as placas da armadura. O adversário se curvou
e sangue jorrou no chão liso.
Os três guerreiros
estavam caídos. Os convidados estavam perplexos. O rei engoliu em seco e perguntou
ao melhor guerreiro já visto por ele:
– Quem
é você?
– Eu agora
poderia, em homenagem ao passado esquecido, fazer uma apresentação poética de
quem sou, pautada na incidência da letra V
– respondeu a misteriosa voz. –Mas, a resposta verdadeiramente válida, via voz
veemente, vinda veloz e vertente é: ainda não descobri. Nunca me foi permitido. Precisei assumir vários papéis no grande
palco da vida. Muitas máscaras já passaram por meu rosto. Atualmente sou um
amigo de suas almas. Sou eu quem, no mar, intercepta os navios reais e tira, de
todos vocês, o ouro tirado dos povos escravizados. O prazer de seus nobres é
sustentado pelo suor de pessoas miseráveis. As riquezas deles, e as suas, são
uma vergonha para todos vocês e cabe a mim livrá-los dela. O destino dessas
riquezas? Cedo aos povos miseráveis, na esperança de dar a eles a oportunidade
de descobrirem quem são. Quanto a mim, se quer mesmo um nome... pode me chamar
de Ônix Pedra-Negra, o pirata.
O visitante retirou
seu disfarce e revelou-se, com a audácia estampada em sua face. O pirata
ostentava, também, o cinto com a fivela de prata, um crânio no centro de um par
de asas, tão inesquecível como a proeza realizada para conquistá-la, um ano
antes. Isso fazia dele o segundo pirata mais procurado. Tal proeza, no entanto,
seria eclipsada pelo grande feito daquela noite, no castelo de Valdrick, e, um
ano depois, ainda seria lembrada por bêbados da Taverna do Coelho Caolho. Não
por todos, é claro. O mestre das apostas bem gostaria de ter se lembrado desses
fatos.
Os piratas haviam se
tornado uma praga aos olhos do rei, mas aquele o havia provocado de forma
pessoal. Para ter certeza, o rei perguntou:
– Ônix Pedra-Negra?
Aquele que, há um ano, invadiu a fortaleza de Agures?
– Apenas coloquei um
fim às depravações daquele velho – Ônix respondeu, com falsa modéstia. –
Nenhuma garotinha pobre será violentada por ele, agora. E não venha me
culpar por ter perdido seu maior comerciante neste reino. Após minha
invasão à fortaleza de Agures, todos os nobres estremeceram diante da
ameaça, no caso, eu, e, graças a isso, assinaram o tratado de hoje. Por isso
estou aqui. Detesto ser usado. – Ele fez uma pausa. Pensando melhor,
acrescentou: – A menos que seja por lindas donzelas em busca de celebrar a
vida, livrando-se, juntamente com suas roupas, de suas entristecidas
rotinas existenciais meramente contemplativas e patéticas, proporcionadas por
seus nobres. Não satisfazer suas mulheres parece ser uma habilidade inerente à alta
classe, dentre outras fraquezas.
Murmúrios indignados
varreram o salão. O pirata continuou, porém:
– Estou aqui para
deixar duas coisas bem claras aos nobres presentes: pagaram pouco por sua
segurança. E pagarão muito caro por sua estupidez!
Os dois
primeiros soldados da Elite Especial a caírem estavam bem menos feridos, em
relação ao terceiro. Mas, foi esse último que se levantou e se colocou diante
do pirata.
Nos olhos de Ônix, havia admiração pela
determinação daquele guerreiro, com dificuldades evidentes em se manter de pé.
Um leve pesar apoderou-se do pirata, quando ele esquivou de dois golpes, antes
de atingir, pela derradeira vez, o oponente. Muito mais sangue foi derramado no
salão de Valdrick.
Ônix esperou o
adversário cair. Antes da queda, porém, o obstinado guerreiro tentou atingir a
face próxima do pirata, com uma cabeçada de desespero. O golpe foi facilmente
aparado por uma mão de Pedra-Negra. Segurando firme o elmo do guerreiro,
o pirata viu o admirável lutador cair de joelhos. O elmo ficou em sua mão e
todos puderam ver o sangue escorrer do canto da boca do homem ferido... a
boca do príncipe.
– Aleck... – o rei
balbuciou ao reconhecer, no corpo prestes a tombar, o filho.
– Eu descobri... haveria um atentando contra o senhor. – Eram
as últimas palavras do príncipe Aleck. – ... não lhe contei... queria provar
ser capaz de viver com minha arte da espada... não pude viver como eu quis, meu
pai... mas, ao menos, poderei morrer...
O corpo do príncipe
Aleck de Valdrick tombou e, naquele dia, Ônix Pedra-Negra feriu mortalmente a
alma do homem mais poderoso e odiado do mundo, ao tirar seu herdeiro. E isso
ainda seria lembrado, muito tempo depois, como seu maior feito.
Muito embora Ônix não
se orgulhasse do ocorrido, tão pouco se envergonhava. A escolha do jovem
príncipe, afinal, em ter estado ali, empunhando uma espada, fazia dele o
principal responsável por aquele desfecho; aos olhos do pirata.
Pedra-Negra não
esperou para descobrir a opinião do rei. Tratou de fugir em disparada. Saber o
momento de entrar e sair de uma cena era um dos seus pontos fortes.
Capítulo III - Perder para ganhar
–
Má qualé seu jogo mais favorito, pirata?
Um breve sorriso
despontou novamente no canto esquerdo da boca de Ônix. Ele sentia a expectativa
refletida em todos os olhares ao seu redor. Sabia o quanto era admirado pelos
bêbados ali. Isso, no entanto, não o deixava nervoso; pelo contrário. Ele tinha
um nome pelo qual zelar e não decepcionaria seus admiradores. Até aquele
dia, brindavam ao maior feito do pirata Pedra-Negra: a morte do príncipe Aleck
de Valdrick.
– Ah! Sim, meu jogo! –
exclamou Ônix Pedra-Negra, fechando e pendurando, cuidadosamente, sua garrafa
de rum no cinto. Depois, em passos cambaleantes, tirou seu chapéu de três
pontas e o colocou bem afastado, virado de cabeça para baixo. Só depois voltou
para o lado do mestre das apostas e do homem prometido de morte, ainda de
joelhos no chão.
– Arremessarei uma
carta. Se eu acertar dentro do chapéu, venço; se errar, perco. Simples assim – disse
o pirata, ao tirar um baralho do bolso de seu sobretudo. Sorriu por um breve
segundo, ao olhar o naipe da carta tirada na sorte, e falou: – Espadas.
É sempre mais fácil arremessar espadas...
– Dessa distânça?! – perguntou,
incrédulo, o mestre das apostas. Olhou para o chapéu bem longe, do outro lado
da taverna. O pirata Ônix devia estar mais bêbado do que aparentava, concluiu. Pareceu
ser bem fácil ganhar as prometidas moedas naquele jogo.
– Realmente não
parece justo – disse o pirata. Foi até o chapéu e o colocou ainda mais
afastado. Para voltar, o pirata deu passos largos, como se isso enfatizasse, e
enfatizava, a imensa distância. – Agora sim. Posso mandar? – perguntou Ônix,
já ao lado do mestre.
O velho olhou em
silêncio para o chapéu por alguns segundos e depois mirou Ônix. Obviamente
duvidava da sanidade do pirata. Pena? Não. O mestre das apostas não tinha. Se o
pirata era louco, em breve seria um louco bem pobre.
– Pó mandá – disse
o mestre, em tom solene. Ao ver o pirata sorrindo, confiantemente, no entanto,
o mestre ficou incomodado. E se Ônix fosse habilidoso? Ele já não
cambaleava. Girava a carta entre os dedos, quase hipnoticamente, demonstrando uma
destreza admirável. Sua posição era firme. Tais observações trouxeram uma
dúvida à mente claudicante do velho. A dúvida trouxe desespero. Quando Ônix estava
prestes a arremessar a carta, o mestre gritou: – Não!!! Péra!... Num tô gostanu!
Cê tá muito confiante!
– E por que não
estaria? Nunca errei um arremesso de carta no chapéu – disse o pirata, mantendo
a postura exata, pronto para arremessar.
Todos na taverna
acompanhavam aquilo com interesse. Os três homens eram o centro das atenções: o
pirata, o mestre das apostas e o prometido de morte, ainda ajoelhado.
– Nunca errô!?
Nunca!? – O mestre passou nervosamente a mão no rosto suado. – Más num posso
perdê!
– Mas já apostou e
terá de ir até o fim, se não quiser fazer todos aqui duvidarem da segurança em
fazer apostas com o mestre das apostas – disse Ônix. O sorriso despontou no canto esquerdo da boca.
Algumas risadas foram ouvidas ao fundo e o pirata continuou: – Seu nome está,
literalmente, em jogo, mestre. Perder algumas moedas será o preço para não
perder seu prestígio e condenar seu ofício. Aceitou apostar e terá de ir até o
fim. Perder a aposta será ganhar o direito de continuar apostando. A única
saída seria mudar a aposta. Mas você não tem interesse nisso. Ou quer apostar
que eu vou acertar?
– Quero!
Por alguns segundos a
taverna foi tomada por um silêncio estarrecedor. No instante seguinte, os
bêbados ao redor riram sem compaixão. No entendimento do velho mestre, o
deboche se devia ao fato de ser tarde demais para mudar a aposta. Ônix reforçou
tal entendimento, ao dizer:
– Sinto muito. Para
mudar sua aposta, de forma a te favorecer tanto assim, há uma taxa e
você não estaria interessado.
– Quanto?! – perguntou
o mestre. O coração acelerado dentro do peito. Não custava perguntar. Ou
custava?
– Quarenta moedas.
É o preço para mudar a aposta – o pirata foi taxativo. – Adiantadas.
É tudo o que posso fazer por você. O que me diz? Feito?
– Nunca errô?
– Nunca.
– Feito – o mestre
separou as moedas e as entregou para Ônix. O pirata as jogou em um saquinho de
couro e o guardou rapidamente no bolso.
– Agora
pó manda! Pó manda! – exclamou o mestre, deveras empolgado.
– No três – disse
Ônix, retomando sua postura inabalável.
– Um! – disse o
mestre.
– Dois – disse o
pirata.
– Três! – disse o jurado
de morte.
O pirata arremessou a
carta. Arremessar não descreve bem o movimento. O pirata simplesmente soltou a
carta, displicentemente. Ela caiu aos seus pés, feito folha seca despencando de
uma árvore; longe, muito longe, do chapéu. Caídos estavam: a carta e o queixo
do mestre das apostas.
O breve silêncio precedeu,
novamente, uma tempestade de gargalhadas. O falido mestre agachou para pegar a
carta, inerte como seu coração dentro do peito.
– Tsc! Hoje parece
não ser mesmo meu dia de sorte... quero dizer, seu dia de sorte... – comentou o
pirata, nada complacente. – Pode me dar as sessenta moedas, por favor, antes de
alguém aqui começar a desconfiar do valor de sua palavra.
Como um sonâmbulo, o
mestre entregou ao pirata todo o resto das moedas de sua bolsa. Ônix fez uma
reverência.
– Má cê nunca
errô antes! – gritou o mestre, trêmulo de raiva, como se, somente naquele
instante, percebesse como foi tapeado; embora não fosse o caso. Sua exaltação
devia-se apenas à fúria de ter perdido num jogo praticamente vencido.
– E é verdade.
Nunca errei um arremesso de carta no chapéu – assegurou o pirata. – Assim como
é verdade eu nunca ter tentado antes...
– Má num posso
ficá sem nada, seu filha duma puta!
– Ora, ainda tem seu
nome, seu título, mais valioso do que cem moedas; creio – disse Pedra-Negra,
balançando os saquinhos de moedas bem diante dos olhos marejados do mestre. –
Mas algo acaba de me ocorrer. Que tal se, com estas cem moedas, eu comprar o
perdão desse pobre coitado? – ele apontou para o homem de joelhos no chão. –
Veja como estou sendo bondoso hoje, pois poderia pegar estas mesmas cem moedas
e pagar para seus próprios capengas
lá fora acabarem com você, para salvar o mesmo miserento em questão. Prefiro,
porém, que todos nos tornemos amigos e entornemos muito rum goela abaixo. Não é
uma boa ideia? Feito?
A simples
possibilidade de reaver seu dinheiro, acalentou a alma do velho e fez seu
coração voltar ao compasso.
– Feito – disse o
mestre das apostas, ao estender a mão, ainda trêmula. Quando recebeu as moedas,
não conseguiu conter as lágrimas e um sorriso, mesmo abafado.
– Isso merece
comemoração! – exclamou o pirata, grato por não ter precisado desembainhar
espada alguma.
O torturado homem se
levantou, quando dois dos homens bêbados revelaram-se bardos; era uma dupla
famosa até, Os Bardos Barbados. A
taverna foi preenchida com uma canção. Todos foram embalados numa dança alegre,
regada a muita bebida. Ônix pegou pela cintura a atendente, que atendia pelo
nome de Gertrudes, e juntos giraram, alegremente.
A rechonchuda mulher
tinha uma graciosidade natural. O belo rosto, entre as enormes tranças na cor
de laranjas, ganhava ainda mais vida com seu sorriso. As sardas caiam-lhe muito
bem. Era a mais atraente naquele lugar e isso não se devia apenas ao fato de
ser a única mulher presente. A gargalhada dela era contagiante e parecia fazer
parte da música, tão ritmada era.
O homem salvo
entrelaçou seu braço no braço do mestre das apostas e eles também giraram,
alegremente.
Muitos giros e muitos
goles de rum depois, Ônix desabou numa cadeira, abraçando a garrafa de rum
roubada, um pouco antes, da atendente. O mestre das apostas saiu da taverna
abraçando seu dinheiro, quase não mais seu, um pouco antes. E o homem salvo
que, pouco antes, estivera de joelhos a rezar, estava agora de pé, abraçando
Gertrudes.
Ônix Pedra-Negra
sorriu. Seu olhar era de quem acabava de pagar uma dívida. Seu amigo, Pierre,
esse era o nome do jurado de morte, estava seguro. Para o pirata, a única ameaça
pairando sobre Pierre, naquele momento, pela forma como ele segurava Gertrudes,
era o tapa encaixado da mulher; tão bem conhecido pelo pirata.
Estava tudo bem, ele
pensava.
@
Do lado de fora,
cercado pelos seus capangas, o mestre das apostas contava suas moedas. Era
bastante, mas não o suficiente para voltar ao círculo de apostas altas. Ele ia
praguejar, quando uma sombra bloqueou a luz. Um homem encapuzado perguntou:
– Gostaria de ampliar
sua fortuna?
– Eita pergunta besta
– o mestre respondeu. – Quem num qué? Má vô avisá duma veiz: se
tentá me enganá, meus capanga vai te fatiá, antes do cê vê.
O capuz de couro
marrom do recém chegado fazia parte de uma túnica sem mangas, aberta nas
laterais, que terminava na altura da cintura, na parte da frente; e na altura
dos joelhos na parte de trás. Na frente, abaixo do cinto, descia um tecido leve
e marrom, para permitir movimentações mais amplas. O capuz quase lhe ocultava o
rosto inteiro. Um sorriso cínico, no entanto, foi visto por todos quando ele
respondeu:
–
Você precisaria de muito capangas para me impedir de fazer algo. – Sem
hesitar, enfiou a mão dentro de sua túnica de couro, deixando todos em alerta.
Retirou dela, porém, um inofensivo cartaz ilustrado e continuou: – Assim
como precisaria apenas me dizer onde posso encontrar esse sujeito para ganhar
uma boa quantidade de moedas.
Na cara do velho
mestre brotou um sorriso, que alargou-se e o fez largar de vez o receio em
ajudar aquele mercenário. Mas ele fez algo que exigiu bastante esforço: ele
pensou.
– Sabendo dessa
recompensa toda – o velho mestre falou. –, vô é te cobrá cinco moeda de ouro
pela informação.
– Não estou disposto
a pagar tanto. Talvez três – o mercenário esclareceu. Eram trezentos valois e
lhe pareceu justo.
– Quatro? – o mestre rebateu.
– Duzentas moedas – o
mercenário arriscou.
– Fechado! – O mestre
festejou. Seus homens ficaram inquietos; apesar de não dizerem nada. O mestre
detestava ser interrompido em negociações, embora a conversão de bronze, prata
ou ouro, para Valois, sempre o confundissem. Duzentas moedas de bronze
equivaliam a vinte moedas de prata e a duas moedas de ouro, apenas. Fosse como
fosse, era o dobro da quantia existente em sua bolsa naquele momento. Estava
com saudade de ter moedas de ouro e isso o empolgava.
– Onde ele está? – o
mercenário tinha pressa.
O mestre, no entanto,
fechou a cara e falou:
– Péra! Posso mandá
meus homi capturá o safado e ficá com a recompensa toda! – O mestre estava em
seu melhor dia para pensar.
– Vejo que sabe onde
o procurado está. Se não aceitar minha oferta, vou ter de arrancar a informação
de você – disse o mercenário, tranquilo, embora cercado pelos homens fortes e
armados do mestre. – Já lhe avisei: seus dez homens não conseguiriam me
deter.
– Intão vamu apostá! –
o mestre arriscou. – Se não derrotá meus capanga, vô ficá com a recompensa
todinha, caus de quê vai sê eu que vô capturá o safado; já que
ocê vai tá todo isfolado. Má se
vencê meus capanga, ti conto onde tá o safado e num precisa me pagá setenta
moeda das duzenta que me ofereceu.
– Se eu vencer esses
homens, então, só precisarei lhe pagar oitenta moedas de bronze? – o mercenário
perguntou, astuto.
– Isso! – respondeu o
mestre, feliz com sua esperteza; ao contrário de seus capangas, é claro.
– Combinado – o
mercenário disse. Recuou e sacou a espada. Esperou, pacientemente, e falou: –
Quando assim desejarem, bravos, mas inaptos, guerreiros.
Poucos minutos
depois, alguns homens gemiam no chão. Outros estavam desacordados e havia
também alguns sem tanta sorte. Ao mestre das apostas, oitenta moedas pareceu bastante
justo. Apontou para a Taverna do Coelho Caolho, atrás dele.
– Ele tá aqui.
Qué qui eu ti mostre?
@
Do lado de dentro da
Taverna do Coelho Caolho, Ônix Pedra-Negra ouviu o tapa dado em Pierre, por
Gertrudes, ecoar. Não poderia ter dado a devida atenção, no entanto, mesmo
desejando fazê-lo. Naquele momento, o pirata sentia um calafrio. O mundo ao
redor nublou e todo som se distanciava, exceto um zunido paralisante.
Detestava quando
acontecia, mas, ao menos naquele momento, estava fora de um contexto perigoso e
não correria grande risco; acreditava. Já tinha passado por aquilo em situações
piores; tinha de admitir.
Não havia cura para tal
condição, uma feiticeira havia lhe dito. Somente a pessoa que o condenou a isso
poderia livrá-lo e ela não o faria. Tal feiticeira, porém, lhe preparou uma
poção para amenizar os efeitos e a duração desses instantes de torpor.
Não lutar contra
aquilo também ajudava a ser mais breve. O pirata havia aprendido. Por isso, se
entregou à paralisia.
Para qualquer um de fora, era um simples
devaneio. Suas pernas não fraquejavam; seu corpo não tombava. Sua “ausência” sequer era notada, na maioria
das vezes. Esperou ser assim, dessa vez também.
Esperava enxergar
aquele mesmo cenário amigável, quando os sentidos fossem restaurados. No último
instante, porém, teve a sensação de que todos os seus feitos anteriores
culminariam, muito em breve, em algo grandioso. Embora não soubesse se seria um
fracasso fenomenal ou um sucesso em igual proporção. Fosse como fosse, teria de
esperar para constatar, mas não muito.
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