Conto O impostor de Bruna Pereira

Saudações! O conto pode ser lido aqui no site ou você pode realizar o download do PDF, ao clicar na seta verde imediatamente abaixo. 






*
Todos os direitos reservados e protegidos pela lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios existentes ou que venham a ser criados no futuro, sem a autorização prévia, por escrito, do autor.


Contato com a autora: Clique aqui
Capa: William Morais
Revisão: Sario Ferreira ( sarioferreira@gmail.com )


*
Nota da edição

Este conto foi vencedor do I Concurso Literário Torus do Portal WM. A proposta era criar um protagonista para um conto no universo do meu personagem pirata, chamado Ônix. As informações básicas foram fornecidas a todos os interessados e o resultado você pode conferir abaixo.

        Ótima leitura! 




*



O Impostor

Parte I - Disfarces e Armadilhas


“Pegaram Pedra-Negra! Pegaram Pedra-Negra!”
 O boato sobre a captura do famigerado pirata se espalhou por todo o reino de Valdrick, causando um alvoroço continental. Em pouco tempo, não havia uma criatura marinha ou alada, caminhante ou rastejante, que não tivesse sido informada sobre o dia e o horário da execução de Ônix, o mais astucioso dos fora da lei. Como esperado, o Cais do Camarão Camarada, único cenário capaz de comportar tal evento, recebeu na manhã do dia fatídico um público sem precedente em sua existência. Admiradores pesarosos e exultantes opositores lotaram as cercanias, do grande poço até os limites do Porto do Potro Morto, certos de que estavam prestes a presenciar o fim de uma lenda.
No patíbulo, enquanto um oficial lia uma longa lista com os crimes do acusado, o homem sob o laço do carrasco encapuzado tentava parecer tranquilo, entediado e insolente, esforçando-se ao máximo para fazer a multidão acreditar que ele era mesmo Ônix Pedra-Negra. Por dentro, tremia como uma bandeira no mastro, mas a segurança da sua família e amigos dependia do sucesso dessa performance fatal. A caracterização era bem convincente, sobretudo por falta do original para comparação. Liam Liw era mais novo sob a sujeira, quase um centímetro mais baixo e um pouco mais cheinho que o verdadeiro Ônix, diferenças perceptíveis somente aos mais íntimos do pirata, mesmo assim, apenas se olhassem bem de perto.
– Ouvi dizer que dá má sorte morrer com um nome falso – sussurrou o carrasco perto do ouvido do prisioneiro. Embora abafada pelo capuz, a voz era perfeitamente compreensível. – Você pode receber a sentença de outro homem no além.  
– Bobagem. Os nomes perdem o sentido para os mortos, sua alma é a única identificação de que precisam. Mas, confesso, é irônico, para um ator, morrer como um de seus personagens – Liam murmurou de volta, enquanto acenava com as mãos amarradas para a plateia.
– E quanto ao verdadeiro Ônix? O que ele vai pensar quando souber que está para matar seu nome? – continuou a figura encapuzada.
– Não acho que este será o fim de Ônix, seria um desfecho ordinário para uma vida extraordinária. É apenas o fim de um homem sem sorte que tentou ganhar alguns valois encenando as aventuras do pirata errado... Mas, como sabe que não sou quem digo ser? Pensei que apenas o próprio Governador e seus conselheiros estivessem completamente a par desta farsa. – O pobre homem, rendido, chegou a imaginar que fosse a morte em pessoa fazendo seu interrogatório.
– Pense de novo, meu rapaz. Além dos idealizadores deste espetáculo e de você, é claro, quem mais poderia ter absoluta certeza de que tudo isso não passa de impostura?
– Ônix!!! – Liam, com seu jeito simplório, quase gritou de surpresa.
– Eu e minha tripulação, para ser mais exato. É verdade que estava um pouco tonto quando recebi a notícia e tive uma pequena crise de identidade, porém, nada grave. Acabei atribuindo toda a maluquice ao rum. Mas depois achei extremamente rude não ter sido convidado para minha própria execução. Vim assim mesmo, como poderia perder tão inusitada ocasião? – Antes que o outro respondesse, o pirata o silenciou e continuou –Chiiii. Vamos mudar o final desta história... A qualquer momento... Prepare-se para correr.
– Espere, não posso...
–... Assim, por ordem e autorização do Governador, sentencio o pirata conhecido como Ônix Pedra-Negra à pena de morte por enforcamento a ser aplicada imediat... – O oficial não chegou a terminar a frase.
Tudo aconteceu em poucos segundos. O falso carrasco estendeu o braço esquerdo até a alavanca, abrindo o alçapão, ao mesmo tempo em que sacou sua espada por baixo da capa escura e cortou a corda do condenado, pulando em seguida pela mesma abertura.
O caos tomou o Cais. Entre berros de raiva e gritos de comemoração, a audiência enlouquecida começou a se atropelar e digladiar. Parte da multidão nutria esperanças de barrar os soldados da guarda e dar chance ao fora da lei de escapar. Outros tantos se empenhavam em recapturá-lo a fim de fazerem cumprir sua pena. Houve ainda quem desejasse simplesmente se afastar da confusão o mais rápido possível.
As pessoas comuns abriam caminho para os fugitivos, espalhando-se como um cardume de peixes pequenos com a chegada de um predador maior e voltando a se reunir após sua passagem. Vez ou outra um cidadão mais audacioso tentava lhes fazer frente, mas Ônix, mesmo com o rosto parcialmente coberto pelo capuz, era capaz de os repelir com facilidade. Liam seguia trôpego, sendo puxado pela ponta cortada da corda da forca, como um burrinho. Em virtude da ausência de estabilidade em seu passo, o moço provocava o desabamento em série dos transeuntes ao redor.
Ônix estranhou a falta de guardas, com seus uniformes chamativos e alinhados, em sua perseguição. Por alguma razão, a movimentação maior estava concentrada no centro da área para a extremidade oposta a que seguiam. Três deles apareceram, porém, no seu campo de visão. O pirata soltou a corda e cortou as amarras das mãos do outro. Enquanto preparava a espada para o combate, bateu o olho num pedaço quebrado de remo no chão e o pegou, depois o jogou para o falso Ônix, que quase o deixou cair.
O pirata lutava contra os três simultaneamente, quando Liam resolveu despertar para a ação e começou a golpear os oficiais nos joelhos. Mais guardas apareceram, mas antes que pudessem lhes aplicar o destino dos primeiros, surgiu um pequeno grupo de estranhos andarilhos vestidos de preto, liderados por uma figura jovem e esguia, de pele muito pálida e com seus cabelos negros caindo sobre os olhos azuis. Ônix pensou que teria de derrotá-los também, mas a misteriosa corja se voltou contra os soldados, atacando ferozmente, e logo viu que eram excelentes espadachins. Não se pareciam com mercenários guardiões ou nada que o pirata tivesse visto... Ainda. Decidiu, contudo, que não era o momento ideal para uma entrevista.
Aproveitando o caminho livre, Pedra-Negra pegou o impostor e recomeçou a correr, entrando na área habitada da cidade, esvaziada temporariamente pela agitação no Cais. Num instante os “dois” Ônix desapareceram nas vielas labirínticas entre os casebres dos pescadores e de trabalhadores dos mais diversos ofícios, parando apenas quando alcançaram um bosque distante dali.
Ônix respirou fundo algumas vezes e tirou a capa colada em seu suor. Aproximou-se, mantendo uma distância respeitosa do ofegante rapaz, observando sua fantasia e avaliando os adereços com falso desdém. Era um trabalho bem impressionante.
– Olhe, é um imenso prazer finalmente conhecê-lo, mas não devíamos ter feito isso – censurou Liam quando recuperou o fôlego – Eu vou voltar, talvez ainda dê tempo de consertar as coisas.
– Alto lá! Acabei de salvar a sua vida. É muita ingratidão da sua parte sequer cogitar a ideia de se entregar – Ônix, agora livre do disfarce, retrucou franzindo o cenho e acompanhando com o indicador o percurso do rapaz, que andava de um lado para o outro.
– Teoricamente você salvou a si mesmo – disse apontando para o próprio figurino – O que realmente importa é que EU não consegui salvar a minha trupe. Nesse momento, sabe-se lá a quais horrores eles estão sendo submetidos no calabouço do Governador, enquanto estou aqui, suando como um porco e sem saber o que fazer.
Liam se sentou em uma pedra, apoiou a cabeça nas mãos e começou a soluçar como um menino. O pirata olhou para o homem, formulando uma careta de desconforto.
– Sem querer diminuir as suas dores, pequena mosca emotiva, mas tenha compostura. Preciso dizer que é um pouco estranho ver a minha imagem nesta lastimável situação. – Ônix hesitou duas vezes, antes de dar dois tapinhas nas costas de Liam, depois se afastou novamente. – Como foi que se enrolou desse jeito nas teias da aranha?
– Eu pertenço a uma caravana de artistas. Somos menestréis, saltimbancos, músicos e pantomimeiros. Viajamos por todas as terras mapeadas contando histórias, trocando conhecimento e diversão por comida e algumas moedas. Enfim, o que o público puder pagar – Liam fungou. – Apresentamos lendas, canções antigas e populares, entre outras coisas. Minha genial esposa também escreve algumas peças, além de contracenar comigo. Gostamos particularmente das epopeias de aventureiros que se lançam na imensidão do mar, incertos de seu destino, mas sem conseguir resistir ao chamado do desconhecido – contou, com triste entusiasmo e um brilho pueril nos olhos úmidos.
– Qual é seu real nome, caro contador de histórias?
– Desculpe, acredito que não cheguei a me apresentar, chamo-me Liam Liw.
Ônix arqueou as sobrancelhas, mirando o artista como quem olhava para um estranho e misterioso espelho, enquanto buscava uma solução para aquela confusão. Queria acalmar o camarada, mas não podia ignorar o fato de estarem sendo caçados. Por isso, falou, com muita calma:
– Sr. Liw, percebo que é mesmo bom com as palavras, aprecio isso, e adoraria escutar suas histórias, mas devemos ser breves. Logo este lugar estará apinhado de oficiais e não pretendo estar mais aqui quando isso acontecer.
– Oh, sim, desculpe. O fato é que em todos os lugares nos quais paramos, as pessoas cochichavam sobre seus feitos, preenchendo as lacunas dos boatos com divertidas e mirabolantes suposições e fantasias... Pode imaginar que é precisamente o tipo de história que prende minha atenção. Cheguei a vê-lo em ação uma vez, lutando em uma praça contra um número muito superior de oponentes. Decidi encenar suas aventuras em ocasiões especiais, para uma plateia que o tivesse em alta conta, é claro. Deve saber que nós, artistas, não somos vindos em todos os lugares, sobretudo quando apresentamos personagens subversivas.  Fizemos figurinos e pintamos cenários. Meu pai é marionetista, escultor e inventor, e criou efeitos de luz e som incríveis...
– Está se empolgando de novo, Sr. Liw. Deixe os detalhes para uma ocasião mais oportuna – apressou Pedra-Negra.
– Certo, certo. – Liam balançou a cabeça em busca de foco – Já fazia alguns dias que estávamos instalados numa pequena propriedade rural de um minúsculo vilarejo, no condado vizinho. Alguém nos denunciou à condessa e ela mandou seus homens até nós, numa noite em que apresentávamos “A Ruína de Agures”. Nossas coisas foram apreendidas e fomos levados à presença da esnobe mulher. O seu irmão acabara de ser designado Governador destas terras e bastou a ela olhar para mim, ainda fantasiado, para elaborar um plano que dignificasse a nomeação, aumentando a estima do Rei Ulysses pela figura do irmão.
– Entendo. Então ela entregou toda a sua trupe para o novo Governador. Enquanto eles são mantidos como reféns, você é obrigado a participar desta “espetacular” armadilha – concluiu o pirata.
– Exatamente. Eu morro fingindo ser você e eles vivem. Era esse o acordo. Até receberiam a recompensa pela sua cabeça – confirmou com desânimo.
– É um plano um tanto arriscado, não concorda? Olhe pelo meu ponto de vista: para a minha pessoa, era uma armadilha extremamente óbvia. A possibilidade de dar errado e causar o efeito contrário ao desejado pela condessa e pelo Governador era muito alta. – Agora era Ônix que andava de um lado para o outro, despretensiosamente tocando as pontas dos dedos umas nas outras, fazendo com que os crânios de prata em seus dedos dançassem e refletissem o brilho do sol, que começava a esfriar com a chegada da tarde.
– Particularmente, não acredito que eles realmente tenham pensado em capturá-lo com esta artimanha. Sem contar com a facilidade em provar que você está vivo, porque... Bem, você está. Talvez pudesse ser trabalhoso e um pouco demorado convencer as pessoas de que você é você e não um maluco fantasiado, decidido a tomar a sua vaga e a sua identidade. – Liam riu e suspirou diante da ironia. – Ainda assim, seria fácil.
– Você tocou no ponto central. A armadilha não foi arquitetada para mim. – O tom de tranquilidade e zombaria desapareceu da voz de Ônix e foi substituído por um de frieza ao qual recorria somente quando se deparava com alguma crueldade desnecessária ou se sentia feito de idiota. E esse caso parecia se tratar de ambas. – Eu era a isca. É natural que, no meu ramo de atividade, eu tenha pisado em alguns calos por aí e atrapalhado os planos de alguém de vez em quando.
– Aposto que muitos piratas te detestam ou invejam a ponto de querer comparecer pessoalmente para te ver com a corda no pescoço – completou o contador de histórias.
– Não os julgo por isso. – Ônix sacou a espada da cintura e avaliou seu fio. – Mas o Governador jogou sua rede e provavelmente a encheu. A essa altura deve estar planejando uma execução coletiva. A pirataria é um problema antigo e difícil de combater. Os governantes têm tentado e falhado há séculos. Esses fracassos pesam sobre os ombros de cada um que assume o posto. Esse “futuro ex-governador” provavelmente planeja encher os olhos do povo e do rei, a ponto dessa pequena encenação, caso seja descoberta, parecer um golpe de mestre, mesmo com nossa fuga tirando um pouco do brilho de seu plano. Ainda assim seria admirável.
– Ainda me assusto com o fascínio das pessoas pelas punições. Parece esconder algo que ultrapassa a satisfação do desejo de justiça – Liam falou, sério, lembrando dos gritos de escárnio de boa parte dos espectadores de seu quase enforcamento. – É assombroso.
– Isso não me surpreende. Um desgraçado se alegra ao encontrar alguém em pior situação porque isso faz com que ele se sinta melhor com a própria miséria, seja ela material ou espiritual. Não os defendo, tampouco os repudio por isso. Quanto aos geradores de miséria, em suas mais variadas formas, esses sim são dignos de condenação – disse Ônix. Liam arregalou os olhos, admirado com a sabedoria do pirata. – Mas chega de filosofia por hoje. Temos uma autoridade para desmoralizar.
– Isso quer dizer que posso contar com a sua ajuda? – O rapaz quase não conteve a emoção ao ter suas esperanças renovadas.
– Tem minha palavra, Sr. Liw. Vou ajudá-lo. Não porque sou bonzinho ou porque esse governador de meia pataca quase envolveu meu nome numa crise de credibilidade e legitimidade, mas porque não admito ser usado desse jeito. – Uma tempestade marítima se formou nas águas escuras e calmas dos olhos de Ônix ao dizer tais palavras. – E também porque fui com a sua cara. – Instantaneamente a turbulência passou e suas retinas voltaram a sustentar o habitual brilho esperto e desafiador.
– Obrigado, muito obrigado. – Liam se levantou e deu um abraço rápido e atrapalhado no pirata, desequilibrando-o. – Não sei como agradecer.
– Só me agradeça quando tudo der certo. – Pedra-Negra o afastou e se recompôs. – Não tire a fantasia ainda, Sr. Liw, vamos precisar dela para o último ato.

Parte II – Tratos e Despedidas
Ônix e Liam interceptaram um soldado que encontraram sozinho. Tiraram seu casaco e suas armas, depois o amarraram e amordaçaram. Desacordado, o homem foi deixado num barril vazio. Quando a hora pareceu propícia, o pirata vestiu o uniforme por cima de suas roupas, assumiu postura marcial e escoltou Liam, supostamente amarrado, até o forte do porto.
A construção se destacava nas imediações. Normalmente era bem guardada. Naquele início de madrugada, porém, contava com apenas um terço de seu contingente habitual. Numa manobra inútil, reveladora de seu desespero, o Governador designara, à maior parte dos seus homens, ordens para patrulhar os perímetros do porto, as praias e as ruas. Enviou ainda soldados para inspecionar tavernas e becos a fim de identificar e capturar piratas e renomados fora da lei que por ventura tivessem ousado se demorar ali ou que não encontraram oportunidade de escapar do cerco. Para motivar os guardas, decretou inclusive uma bonificação extra a quem trouxesse cativos valiosos.
Como consequência, num processo estendido ao longo de todo o dia e noite adentro, uma “procissão” de infelizes fora conduzida ao forte, para interrogatório e avaliação. Muitos não passavam de pobres pedintes ou beberrões e encrenqueiros, representando um problema maior para si mesmos que para o meio social. Na prática, no afã de se mostrar ao povo como um diligente provedor da ordem e da segurança, o Governador vinha lotando as prisões e os calabouços do forte desde a sua posse, sem se importar realmente com as injustiças decorrentes de seus projetos.
Liam, novamente interpretando Ônix, fingia ser arrastado coercitivamente, realizando manobras de resistência previamente combinadas com o verdadeiro pirata, no papel de guarda. Três soldados sonolentos assistiam a dupla se aproximar dos portões do forte, acotovelando-se e se empertigando quando reconheceram a figura do prisioneiro.
– Soldado! – cumprimentou em tom alto e surpreso o maior deles, quando chegaram a uma distância na qual fosse possível ouvir. – Como conseguiu pegá-lo? Tentamos localizar o paradeiro dessa escória o dia inteiro.
– Não foi nada fácil – respondeu o falso guarda, ofegante. – Mas sabem de uma coisa? Ele não é tudo isso que dizem por aí. – Apertou o ombro de Liam, indicando sua deixa.
Liam se soltou e se preparou para correr. Ônix pulou sobre ele e o derrubou no chão, simulando certa dificuldade para contê-lo.
– Uma mãozinha seria bem-vinda – sugeriu aos homens.
Imediatamente o trio correu para auxiliá-lo, mas quando se abaixaram junto aos dois, Ônix soltou Liam e ambos atingiram os desprevenidos homens da lei, os deixando inconscientes. O pirata entregou uma das espadas dos oficiais para o parceiro e empunhou a sua.
– Para um pirata, você daria um excelente ator – Liam elogiou.
– Para um ator, você daria um excelente... Não... Melhor ficar nos palcos mesmo, rapaz – Ônix falou com sinceridade. O outro riu em concordância.
Atravessaram as muralhas da construção e parte de um corredor coberto que contornava o forte, dando acesso a outros pavilhões, salas e escadarias, conduzindo a torres e outros níveis. Saíram no pátio principal, onde robustas catapultas e canhões se encontravam posicionados nos encaixes da mureta, voltados para o mar. Por todo o espaço, também se encontrava caixotes e munições suficientes para agilizar a ação em caso de emergência, como um ataque surpresa. Alguns soldados circulavam por ali.
Escondidos pelas sombras da noite e por um dos grossos pilares de pedra que davam sustentação ao piso superior, Ônix retirou o disfarce e se voltou a Liam.
– Corra para aquele lado e se esconda onde puder – sussurrou o pirata.
– Mas eles vão me ver – o outro sibilou de volta.
– Essa é a ideia. Deixe que o identifiquem e se esconda. Vamos fazê-los ver dois de nós, mas enxergarem apenas um.
Liam entendeu a intenção de Ônix, tomou fôlego e corajosamente se expôs, esbarrando propositalmente em um caixote, e quando foi notado se escondeu. A baixa iluminação facilitava essa parte.
– Não acredito, era o Pedra-Negra! – um deles comentou. – Vou ganhar o maior prêmio quando pegá-lo.
– Não se eu puser as mãos nele primeiro – respondeu outro. Os demais pensaram o mesmo.
Quando os homens se dirigiam ao local do provável esconderijo de Liam, Ônix repetiu a cena em suas costas. Os soldados ficaram desorientados. Um de cada vez, e em pontos opostos do pátio, o pirata e o ator se revezavam ao entrar e sair do campo de visão dos guardas, a fim de deixá-los atordoados.
– Mas que diabos está havendo aqui? – um dos soldados questionou. – Vou soar o alarme.
– Por causa de um homem só? Quer que sejamos chamados de incompetentes ou dar a chance de capturá-lo a outro? – retrucou outro homem. – Vamos nos dividir e cobrir todo o pátio.
Isolados, os soldados eram interceptados um a um pela dupla. Como resultado, corpos eram deixados desmaiados no escuro. Pedra-Negra poderia facilmente liquidá-los, mas não encontrava honra ou satisfação nisso. Para Liam, a ideia de tirar a vida de alguém era impensável. Os últimos cinco guardas estavam mais prevenidos e foi necessário combatê-los por mais de um instante. Os metais das lâminas das espadas tiniam com fervor, pontuando cada movimento. Liam só havia empunhado espadas cenográficas antes, mas a coreografia dos golpes lhe era familiar, assim, não se saiu tão mal na sua primeira batalha real.
Quando os derrotaram, foi preciso amarrá-los e amordaçá-los. O vento salgado varria o forte e a noite fria dava sinais de partida, mas, enfim, tinham limpado a área, e felizmente antes que suas presenças tivessem sido largamente anunciadas.
Novamente reunidos, alcançaram as escadas, descendo até as masmorras. Correram degraus abaixo, parando no aposento dos carcereiros. Ali, com pouco trabalho e mais barulho, derrubaram dois homens, dos quais pegaram algumas chaves.
– E agora, para onde vamos? – Liam olhou em volta, desorientado.
– Não foi aqui que o Governador mandou prendê-lo até a execução? – Pedra-Negra verificou se vinha alguém atrás.
– Não. Fiquei isolado numa sala especial lá em cima, para que não pudesse correr o risco de revelar o segredo ou pedir ajuda para alguém.
– Bem, você vai por aqui então. Deste lado ficam presos os ladrões de galinha, os arruaceiros e os maus pagadores de impostos. Seus amigos devem estar entre eles. – Ônix indicou – Eu vou para lá, nos encontramos aqui daqui a pouco.
– O que tem para lá?
– Os criminosos perigosos e os piratas, é claro. – Sorriu de lado e sumiu.
Liam seguiu pelo corredor escuro, analisando cela por cela para ver se encontrava um rosto conhecido em meio a tantas faces descarnadas e encardidas. Rezava para que pelo menos tivessem tido a decência de aprisionar as garotas num lugar separado, caso contrário... Apressou a busca.
Um braço se projetou de uma das celas, agarrando sua camisa e puxando-o com força de encontro à grade.
– Eu vim para ver você morrer, em vez disso acabei preso por sua causa. Mas já que foi burro o bastante para aparecer, vou esganá-lo com minhas próprias mãos – rugiu uma voz.
– Espere! Não sou quem pensa! Sequer conheço o senhor! – disse Liam, tentando se soltar.
– Não banque o esperto. Sou eu, Fergus, Flagelo do Mar.
– Ah! O capitão do Banheira da Morte! – Lembrou-se do pirata mais famoso por sua vaidade que por seus feitos.
– É Bandeira da Morte, engraçadinho – corrigiu com raiva. Um velho gargalhou até engasgar no fundo da alcova.
O verdadeiro Pedra-Negra apareceu.
– Aí estão. Entre os presos comuns? – Provocou e soltou Liam das mãos de um Fergus confuso com a visão da dupla.
– As celas do outro lado estavam cheias – respondeu o velho ao verdadeiro Ônix quando se aproximou da grade. – Já faz muito tempo, marujo.
– Capitão – retificou. – A essa altura pensei que já tivesse deixado este plano material, Calamar. Como vai o Escama Afiada?
– Também gostaria de saber. Perdi num motim. Quanto a mim, garanto que estou bem vivo e com desejo de continuar assim. Vai nos tirar daqui? – Calamar perguntou com sorriso amarelo. Fergus olhou de canto de olho com raiva.
– Não deveria, estou bem chateado por terem desejado assistir o meu fim. No entanto, isso vai depender da resposta que darão à minha pergunta.
Liam admirava em silêncio, mas totalmente absorto, o diálogo entre Ônix e os demais piratas, como uma criança curiosa evitando atrapalhar a conversa dos adultos.
– Não faço tratos com caranguejos – antecipou-se Fergus.
– Eu faço – prontificou-se Calamar.
– Ofereço-lhes a liberdade em troca de uma promessa. Aceitam o acordo? – Ônix perguntou, calmamente.
– Isso não é liberdade, é trocar uma prisão por outra – contestou Fergus.
– Que tipo de promessa? – questionou o velho.
– A promessa de que me farão um favor cada um quando eu solicitar. Mas quero que jurem pelo código da pirataria – disse Ônix.
– Aceito – respondeu Calamar.
– Aceito sob uma condição. Deve solicitar o favor no prazo máximo de um ano ­– Fergus pronunciou.
– Se me permitem a intromissão – Liam ousou dizer –, o senhor não está em posição de impor condições. – Olhou para Ônix esperando visualizar qualquer sinal de aprovação em seu rosto.
– Ouviu o rapaz. Eu determino o momento. É pegar ou largar.
Liam sorriu, orgulhoso de sua participação no trato. Fergus pensou nas opções.
– Tudo bem, eu aceito – resignou-se, com o rosto vermelho. Os piratas fizeram o juramento em coro.
– Seria muito abuso pedir para que refizessem essa parte do juramento? Quero lembrar as palavras corretas mais tarde quando for... – Liam percebeu que os olhares incrédulos do trio de piratas se voltaram a ele e interrompeu a frase. – Deixem pra lá. – Voltou a ficar quieto.
– Excelente, até que foi um dia produtivo. – Ônix levou as mãos à chave. – O Governador só conseguiu capturar vocês dois?
– Havia oficiais infiltrados na multidão, ouvindo as conversas para nos identificar em nossos disfarces, mas não pareciam preparados quando você começou aquela bagunça no Cais. Acho que você antecipou as coisas. Ainda não tinham fechado completamente o cerco. Eles caíram desesperados sobre nós, a maioria conseguiu fugir. Não tivemos a mesma sorte, há há ha. Um velho barrigudo e um garoto presunçoso, que grande prêmio! – contou Calamar, Fergus bufou ofendido. – Se não me engano, tem mais um aí do lado.
Pedra-Negra segurou as grades da cela seguinte e se surpreendeu duas vezes.
– Perdoe-me por entrar sem bater. A porta estava aberta – falou olhando para a figura na cela. Era quem comandava o grupo desconhecido que lhes facilitara a fuga... Olhando de perto, o pirata percebeu que na verdade era uma mulher, bonita de um jeito não convencional.
– É porque eu estava de saída quando ouvi você chegar. Decidi esperá-lo, afinal, vim especialmente para conhecê-lo. – A moça tinha uma voz segura e melódica.
– Está em vantagem, não acho que já tenha ouvido falar de você. – Só então notou os outros prisioneiros daquela cela, encolhidos no canto e se esforçando para se afastarem ainda mais da mulher. Teriam atravessado a parede se fosse possível. Ônix ficava cada vez mais curioso.
– E raramente ouvirá. Os poucos que me conhecem me chamam de Agouro, estou no comando do Última Sombra e do Espuma Vermelha. – Seus olhos hipnotizantes piscaram e por um milésimo de segundo Ônix podia jurar que mudaram para a cor de rubi.
– São navios de contos de fada. – O pirata começou a duvidar da sanidade mental da mulher.
– Para mim, são navios de histórias de terror – disse Liam lá da porta, sem se atrever a entrar. Ônix quase havia se esquecido do rapaz que prometera ajudar. Cumpriria a promessa, mas não conseguia resistir a um mistério como esse.
– É útil que continuem a pensar assim. – Agouro se manteve impassível.
– Por que me ajudou mais cedo? – Pedra-Negra buscava explicação.
– Não podia deixar você morrer, Pedra-Negra, porque eu sei que você sabe de coisas que eu desejo saber, coisas que poucos além de você sabem.
Ônix ficou apenas encarando os olhos daquela estranha mulher, tentando decidir se a consideraria uma ameaça ou não.
– Ouvi a proposta que fez aos parvos aqui do lado. – Agouro desviou o olhar. ­– Eu também aceito.
– Mas a sua cela já estava aberta. – O nó em sua mente apenas se apertava.
– Eu sei.  – A reafirmação de Agouro só confirmava que ela tinha intenção de encontrá-lo de novo um dia. Ônix faria de tudo para evitar que isso acontecesse.
O sino de alarme do forte finalmente começou a soar. Cauteloso, Ônix deixou a cela sem virar as costas para Agouro, que o acompanhou passo a passo. Libertou os outros piratas, que encararam a mulher quase com medo.
Um sentimento de urgência se apoderou de Liam. O pobre homem seguiu sua busca em desespero, olhando cela por cela. Tremia como se estivesse em um navio prestes a naufragar. Pedra-Negra o encontrou a tempo de presenciar o exato momento em que a felicidade iluminou o rosto do rapaz. Ali estava seu tesouro de pirata, oito pessoas enclausuradas numa minúscula cela, como pedras preciosas trancadas num baú: um idoso, pai de Liam; a esposa, segurando gentilmente sua mão; um homem manco com dois rapazotes fortes que pareciam seus filhos; uma mulher entrando na meia-idade; uma jovem com uma cicatriz antiga no pescoço; e uma menina recém-saída da infância. Todos parecendo exaustos, porém, sem ferimentos graves.
Ônix se sentiu desconfortável ali, assistindo àquele emocionante reencontro, e até mesmo um pouco culpado, mas se alegrou por Liam. Cenas como essa lhe provocavam sentimentos conflitantes, mas teve de admitir para si mesmo que foi algo bonito de se ver. Ouviu a garotinha perguntar algo incompreensível a seu respeito e sorrir com a resposta.
– Vamos sair rápido daqui, antes que muitos guardas atendam ao alarme. Agora somos um time maior, mas ainda assim estamos em minoria – apressou o ator, um pouco mais aliviado.
– Então vamos precisar angariar mais aliados à nossa causa. – Pedra-Negra ergueu os braços ao lado do corpo, como sinal de obviedade, depois girou sobre o próprio eixo, indicando os compartimentos lotados ao redor.
Abriram as celas uma a uma, quebrando os cadeados e soltando as dobradiças das grades quando as chaves não serviam. Com os piratas recém-libertos na dianteira, uma horda de condenados tomou os corredores em direção à saída, atropelando e derrubando guardas encontrados pelo caminho.
A trupe ficou para trás em razão dos passos lentos do pai de Liam. Após dias sentado naquela cela, o velho sentia muitas dores ao caminhar e seguia escorado nos ombros da nora. Soldados furiosos correram em sua direção. A moça com a cicatriz tomou um generoso gole de uma garrafa de rum encontrado sobre uma mesa no canto, arrancou um dos archotes da parede e literalmente cuspiu fogo sobre os adversários. Forçados a recuar, os homens do Governador abriram passagem pela lateral.
Liam e Pedra-Negra passaram por eles e indicaram a saída, eliminando os obstáculos no corredor à frente. Para impedir os oficiais que os alcançassem e os atacarem pela retaguarda, a garotinha e a mulher mais velha tombaram um barril de óleo de baleia sobre o chão, fazendo-os derrapar. Quando alcançaram o pátio principal, os rapazes da trupe saltaram sobre uma pequena fileira de guardas restantes, como numa sequência acrobática de um número de espetáculo, cercando os oficiais como dois ágeis tigres. O homem manco arregaçou as mangas e tomou uma marreta escorada em um dos caixotes, mas os guardas arregalaram os olhos e se renderam antes que ele precisasse usá-la.
– Aquele é o navio da condessa. – O pai de Liam apontou para a embarcação, se afastando do porto. Junto de sua esposa, o ator correu até a murada e tentaram sem sucesso armar um dos canhões. O velho tomou o controle da situação, limpou o tubo do canhão, carregou-o, ajustou a mira com incrível precisão, escorvou a espoleta e acendeu com uma pederneira improvisada, disparando aquela máquina de guerra. Liam e a esposa repetiram o procedimento em outros dois canhões. Os tiros acertaram em cheio o casco do navio.
Ônix sumiu temporariamente de vista, retornando alguns bons minutos depois com visível satisfação. Alcançando a entrada do forte, o grupo liderado por Pedra-Negra encontrou mais oficiais abatidos, dominados pelos sinistros marujos de Agouro, que aguardavam sua capitã para logo em seguida desaparecerem nas sombras.
Com pouca cerimônia, os piratas despediram-se ali e cada um tomou seu rumo. Ônix, Liam e sua trupe seguiram juntos para um local distante na praia. Com a fuga em massa dos prisioneiros, os patrulheiros da costa foram obrigados a retornar à cidade. A reputação do Governador sofrera um dano irreparável.

O sol nascia e o pirata dava dicas ao ator de como interpretá-lo melhor.
– Vou me lembrar – prometeu Liam, dando um beijo na bochecha da esposa. – Mas acho que na próxima temporada vamos apresentar a lenda do deus Dáverus e da humana Clariça. Na verdade, talvez seja melhor “enterrar” de fato um Ônix hoje, se é que você me entende. Será mais seguro, para mim, é claro, você voltar a ser único no mundo. Mas estou pensando numa adaptação para teatro de bonecos – o ator sorriu. – No momento, fico feliz em voltar a ser apenas eu.
– Você é quem sabe – Ônix soou contrariado. – Tome, Sr. Liw, quero que fique com isso. – Tirou uma bolsa que pesava do sinto.
– Pode me chamar de Liam.
– Pois bem, Liam, este é o dinheiro da recompensa, peguei lá no forte. Acho justo você ficar com a metade. – O homem ficou parado, sem reação a não ser a expressão de incredulidade no rosto.
– Obrigada! Vai ser de grande ajuda. Perdemos todas as carroças com as nossas coisas e agora precisaremos recomeçar do zero. – Agradeceu a esposa, enquanto a moça da cicatriz beijou o pirata de surpresa.
– Levem tudo, vai! Agora vou valer o dobro mesmo. – Ônix não acreditou nas próprias palavras. – E sumam daqui antes que eu me arrependa.
– Você é um herói de verdade, meu filho, mesmo que teime em se recusar a reconhecer isso. – O pai de Liam apertou o ombro direito do pirata com as mãos enrugadas, mas firmes para alguém da sua idade.
– Foi uma honra conhecê-lo. Espero que nossos caminhos se cruzem novamente um dia. – Liam apertou a mão de Ônix, agora com um olhar de admiração e gratidão.
A trupe fez um agradecimento em conjunto, como no final de uma apresentação, e colocou o pé na estrada, apoiando-se uns aos outros.
Ônix olhou para o mar, pensando nas próximas histórias que seriam contadas a seu respeito, as quais nem mesmo ele ainda conhecia. Sorriu e partiu em busca dos seus.

Fim


*
Sobre a Autora

"Bruna C. Pereira tem 26 anos, é professora, formada em História e em Artes Visuais. Mora no interior de São Paulo com a família e seus animais de estimação. Ama livros desde a infância porque eles sempre fizeram seu universo parecer maior. Escreve para não viver sozinha em seu mundo imaginário, onde passa a maior parte do tempo. Enche gavetas com contos, músicas, histórias e cola desenhos na parede de seu quarto. Está sempre em busca de tudo que possa trazer magia e aventura para sua vida."

*

Observação: O concurso Torus do Portal WM foi promovido para contemplar apenas um conto vencedor,  mas, ante dois trabalhos muito bem elaborados, dentre todos os inscritos,  resolvi premiar os dois - sem fazer distinção entre primeiro e segundo lugares -.Um deles foi este O impostor, da Bruna Pereira, que acabou de ler (espero) e o outro foi A Ilha do Medo, do escritor William Amorim e você pode conferir clicando na capa do conto dele, logo abaixo.

   Para participar desse concurso,  os interessados deveriam, obrigatoriamente, ler o meu conto, chamado Segredo. E agora tal conto está também disponível e gratuitamente. Basta clicar na capa dele, logo abaixo, caso queira conhecer um universo pirata inusitado.

Ótimas leituras!


William Morais






























































































Nenhum comentário:

Postar um comentário